sábado, 19 de junho de 2010

Três – Lucas

O vento frio da manhã parecia especialmente frio ali.

O sol mal tinha nascido e Guilherme já estava fora de casa. Foi relaxante poder ver que a cidade podia ser calma, com poucas pessoas andando pelas calçadas e menos carros e caminhões transitando de um lado para o outro.

Guilherme decidira, na noite anterior, que precisava passar em outro lugar antes de ir para a escola. Chegaria atrasado, com certeza, mas não tinha muita escolha. Não era nem uma questão de escolha. Ele precisava.

Cruzara a cidade na direção oposta que normalmente fazia todos os dias. Tomara um ônibus que, aliás, nunca tomou, e embora as imagens que passavam na janela não eram as que estava acostuma a ver todos os dias, estava tão distraído com seus problemas que não se incomodara com nada.

Desceu num bairro suburbano, depois de uns dez minutos no ônibus. O cemitério era logo do lado do ponto; após a grande entrada de pedras, um morro subia para os outros terrenos da propriedade. Guilherme caminhou, observando outros enlutados andando de cabeça baixa e – por mais estranho que pudesse parecer – alunos que cortava caminho pelo cemitério para chegar a uma escola estadual ali perto.

Depois de andar um pouco Guilherme chegou a um tumulo, perto de um grupo de árvores bem frondosas, de folhas verde escuro, que, àquela hora da manhã, projetava uma sombra fria sobre ele. A lápide de granito cinza no chão estava gravada com os entalhes:

Lucas Tavares Villela

16 de novembro de 1994 – 4 de abril 2009

Amado filho e irmão

Guilherme suspirou. Ainda não tinha se acostumado a chegar àquele lugar, afinal, despertava sempre a lembrança triste de que o irmão tinha partido.

- Bom dia, mano – ele disse, sem ânimo, ajeitando a mochila no ombro, e a mão no bolso.

- Bom dia. Acordou cedo, hoje.

Guilherme nunca soube se era fruto da sua imaginação ou se, sempre que visitava o tumulo do irmão, via o espírito dele seu lado, como quando discutiam ou jogavam video game até altas horas da madrugada. Sentia a presença do irmão, nitidamente, e sempre que ia ao cemitério, conversavam como se ele nunca tivesse partido. Aliás, diante da lápide de Lucas, era o único lugar que Guilherme conseguia baixar a guarda e se permitia sentir vulnerável. Qualquer outra pessoa que visse o irmão morto provavelmente teria se assustado, gritado, entrado em pânico. Guilherme nunca estranhara a visão do irmão, talvez por achar que aquela imagem era mais fruto de sua imaginação do que o corpo espiritual de seu irmão.

- Eu precisava vir aqui.

- E perder sua aula de literatura?... – Lucas ergueu a sobrancelha.

Guilherme fez cara de desdém.

- É literatura... – como se a insignificância da matéria fosse evidente.

Lucas e Guilherme tinham quase o mesmo semblante. Ambos tinha o mesmo olhar altivo estampado nas íris verdes e a pele quase tão clara quando uma folha de papel. Lucas também era loiro como o irmão e tinha o nariz fino e pontiagudo. Na verdade, as únicas coisas que poderiam distingui-los eram o peso e a altura: Lucas era mais magro e mais baixo que o irmão mais velho. Guilherme sempre o via (ou o imaginava) vestido com um sobretudo negro cobrindo-lhe o corpo.

- Outras coisas têm me perturbando – disse Guilherme.

- Como sempre – o irmão comentou, displicentemente.

- Pois é...

- Mamãe não tem facilitado pra você, não é mesmo?

- Não. Acho que ela tem melhorado um pouco. Outro dia ela foi até a casa da vovó. Me deixou louco de preocupação, mas é um avanço. Ela só saía de casa pra ir naquele psiquiatra de araque...

- Ela tem feito o que pode, Gui.

- Eu sei, eu sei. Mas tem sido muito difícil ter que monitorar as noites de sono dela, os remédios. Eu mal tenho dormido e ainda tenho que estudar que nem um maluco pra passar no ITA, estudar pra provas, trabalhos, academia...

- ... Ana – Lucas o interrompeu, com um sorriso no rosto.

Guilherme no entanto não achou muita graça. Sua expressão se fechou ainda mais.

- Ela não quer saber de mim, Lucas. Mas não é disso que eu estava falando.

- Claro – Lucas ficou sério – Continue.

- Eu queria que o pai voltasse pra casa, sabe. Talvez fosse mais fácil.

- Como, se ele trabalha o dia inteiro fora?! – Lucas pontuou.

- Pelo menos teria alguém pra dividir a tensão. Alguns dias atrás, eu tentei convencê-la a deixá-lo voltar – Guilherme bufou, desprezando a idéia que tivera em tal momento – Duas horas de choro, repetindo que foi culpa dele você ter... – Guilherme hesitou – ...você sabe.

- Morrido?

- Não é bem essa a palavra que eu escolheria... – Guilherme respondeu.

Lucas balançou a cabeça, sério.

- Não foi culpa dele.

- Eu sei que não, Lucas! Só que não tem como convencê-la disso!

- Não é culpa sua, também – Lucas disse, de repente.

Guilherme encarou o irmão, perplexo.

- Eu não disse isso.

- Não disse. Mas sei que você pensa nisso, às vezes.

Guilherme queria falar alguma coisa, queria negar que aquilo fosse verdade. Não podia. O sentimento de culpa era recorrente, sim. Achava que se fosse mais atento, talvez tivesse evitado aquela tragédia.

- Não havia nada que você pudesse fazer, Gui.

- E parece que não há nada que eu possa fazer agora.

Lucas respirou fundo, encolhendo os ombros, e depois relaxando-os.

- Pode ir pra aula. Pode, não! Deve!

Guilherme ficou calado um tempo, pensando. Até que disse:

- Você provavelmente está certo.

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