sábado, 31 de julho de 2010

Quinze - Finalmente, Compartilhando

Rafael espumando como um cão raivoso, seus passos quase partiram os degraus da escada ao meio. Incrível como Alex podia melar toda a sua felicidade! Ana, que o seguia de perto, achou graça do estresse do amigo.

Os dois entraram o quarto do garoto e ele fechou a porta.

- Se acalma, Rafa.

- O Alex me irrita, Ana!

- É a função dele de irmão.

- Sorte sua, ser filha única!

- Ok. Mas me conta logo! O que aconteceu que você está desse jeito! Parece que está até brilhando!

Rafael se acalmou, como se um anjo tivesse soprado em seu ouvido e feito toda a raiva sumir de sua pequena cabecinha. Não sabia direito por onde começar. Então, achou justo e óbvio, começar do começo:

- Depois da festa, cheguei em casa e me tranquei no quarto, fiquei me lamuriando, chorando e tudo o mais - disse, achando-se idiota por ter passado por aquilo.

- Conheço o ritual - disse Ana entediada - Continue.

- Então. Só que na festa, eu tinha derramado cerveja no Selton e molhei a camisa dele toda. Aí, emprestei uma camisa minha que estava sobrando.

- Você está me enrolando!

- Calma! Bem, aí, de noite, ele veio me devolver a camisa. Quando, entrei, eu não bati o portal da frente e, como ele é quase de casa, ele veio sem bater. Como não tinha ninguém no andar de cima, ele subiu, veio pro quarto e me viu chorando.

Ana ficou surpresa:

- Sério!

- Aham! Aí, ele ficou preocupado, me perguntou um monte de coisas. Ele achou que eu estava assim por sua causa...

- Minha causa?!

- Éh! Essa maldita história de que a gente fica. Ele achou que eu estava mesmo afim de você, só que você não estava afim de namorar comigo e estava me enrolando!

Ana riu alto.

- Como esse povo viaja!

- Pois é! Falei que não era nada daquilo. Aí, ele achou que eu estava a fim da Débora e se desculpou por ter ficado com ela e disse que pra ele tinha sido só uma ficada e nada mais.

- Eu não disse!

- Disse - Rafael admitiu. Incrível como as pessoas diziam aquilo com tanto prazer - Quando ele falou isso, fiquei mais aliviado. Sei lá, tirei um peso das costas! Imaginei que ia ver os dois todo dia na escola, abraçados namorando, feliz para sempre!

- Por isso você está desse jeito. Só porque ele disse que não tinha nada com a Débora.

- Não! O melhor ainda está por vir!

- Então conta logo de uma vez, porque não estou mais me agüentando!

Rafael tomou fôlego. Estava chegando na parte que realmente importava.

- Quando fiquei mais aliviado, não sei o que me deu, só sei que contei que gostava dele.

O queixo de Ana foi ao chão!

- Você se declarou pra ele?

- Sim.

- E ele? - perguntou Ana, mal se segurando na cadeira.

- Me beijou.

- O QUÊ?!!

- Ele me beijou! Simplesmente, pulou em cima de mim e me beijou - disse Rafael sorrindo, não conseguiria esconder sua felicidade nem se quisesse.

- Ele te beijou, assim, só de você dizer que era afim dele?

- Aham! Aí, ele me pediu desculpas por ter ficado com a Débora na minha frente, falou que também era afim de mim, mas que tinha desistido depois que falei que não era gay e que tinha ficado chateado pelos comentários do Guilherme.

- Eu nunca ia desconfiar dele – Ana disse. Era mentira. Claro que ela não tinha certeza, mas estava desconfiando que toda aquela amizade de Selton por Rafael era mesmo apenas amizade. Mas não achou importante revelar que suas suspeitas tinham se confirmado.

- Nem eu!

- Por isso, esse colchão ainda está do lado da sua cama? Ele dormiu aqui? O que vocês fizeram essa noite?

Rafael ficou um pouco envergonhado.

- Tudo.

- Tudo?

- Eh! Tudo!

- Vocês transaram?

- Transamos!

- Que isso!!! Vocês transaram?!

- Foi perfeito!

- Você é bem fácil também, hein?! Nem pra fazer um doce, segurar um pouco mais a onda! Logo na primeira ficada você já abre as pernas!

Rafael pegou o travesseiro da cama e bateu na amiga, deu várias pancadas nela. Era óbvio que os dois estavam apenas brincando.

- Você também abriria as pernas, se estivesse na mesma situação que eu!

Os dois riram até faltar ar nos pulmões.

- Mas espera aí, vocês usaram camisinha, né?

- Lógico! Não sou estúpido, nem ele!

- Que bom! Não acho que ele tenha alguma coisa, mas nunca se sabe, né?

- Também acho que não, mas ainda não é a hora de largar a camisinha de lado. Talvez mais pra frente.

- Como assim “mais pra frente”?

- Não tem contei o melhor!

- Ainda tem “o melhor”?!

- Ele me pediu em namoro.

O baque foi tão forte que Ana nem se atreveu a rir.

- Ele te pediu em namoro?

- Aham! Namoro!

- Onde o mundo foi parar?

- Não sei. Só sei que estamos namorando!

- Gente que evolução! Pra quem ontem estava se lamuriando por achar que nunca ia ficar com ele, de repente, fica, transa e agora estão namorando! Sua noite foi movimentada!

- Demais! A melhor noite da minha vida!!!

Catorze - A Mesma História

E não demorou, mesmo!

Dez minutos depois, Ana estava batendo a campainha. Rafael se levantou num pulo da cama e saiu disparado até o portão.

- Pode deixar, Alex! É pra mim! - ele gritou, enquanto descia as escadas.

Mal podia esperar para contar a amiga o que tinha acontecido na noite anterior.

- Boa tarde, minha criança - disse Ana abraçando e dando um beijo no rosto de Rafael - O Papai Noel passou aqui mais cedo, por isso essa empolgação toda?

- Não, mesmo porque o Papai Noel não gosta de calor! - respondeu ele - Entra aí.

Os dois passaram pela sala, e logo que viu Alex sentado na sala, vendo televisão ela disse:

- E aí, Alex, tudo bem?

- Tudo bem, Ana – ele disse, se levantando para cumprimentá-la apropriadamente.

- Ouvi dizer que você está namorando sério, agora... – Ana disse, enquanto era envolvida pelos muito bem desenvolvidos braços de Alex. Ela conhecia o histórico comprido de mulheres que Alex ostentava. Aliás, Rafael achava que esse era o único motivo pelo qual ela nunca dera muita bola para o irmão, afinal de contas, qualquer uma que colocava os olhos em Alex era imediata e irremediavelmente encantada.

- Ouvi dizer que você se trancou com meu irmão no churrasco de ontem... – ele rebateu a provocação.

- Você já pensou em ser um pouco mais sutil? - Rafael perguntou, achando ruim a grosseria do irmão.

- Ela começou, Rafa.

- A palavra “cavalheirismo” te lembra alguma coisa?

- Relaxa, Rafa. É só brincadeira.

Rafael deu um muxoxo.

- Mas, aqui, essa história é séria mesma – Alex perguntou a Ana.

- Você não consegue esquecer esse assunto, não?! – Rafael exasperou-se, irritado com a repetição do assunto.

Ana e Alex arregalaram os olhos pra Rafael.

- Já ficou chato, já! – ele continuou.

Ana caiu na gargalhada:

- Rafael, não precisa isso tudo. Saciando sua curiosidade, de uma vez por todas, Alex: sim, nós ficamos trancados no quarto, mas não rolou nada além de um abraço e uma boa conversa.

Alex torceu a cara.

- Tem certeza?

- Chega, Ana! Vamos lá pra cima.

- Vamos. Alex, até daqui a pouco.

- Até, Ana – Alex disse, pouco convencido da explicação dela.

Treze - Telefonema

Assim que terminou seu almoço, Alex pediu licença da mesa sempre com aquele olhar estranho, vigilante, e foi para a sala assistir televisão. Rafael e Selton ficaram na mesa com Sueli, fazendo-lhe companhia enquanto ela não terminava de comer. Conversavam sobre o sábado e a tempestade inesperada. O que nenhum dos dois lados da conversa sabia é o que o outro estava omitindo os fatos mais interessantes do dia anterior. Sueli não falaria que tinha ido almoçar com um admirador quinze anos mais novo do que ela, e Rafael jamais falaria que tinha transado sabe-se lá quantas vezes com Selton e que naquele exato momento eram namorados. Ele se impressionou, na verdade, em como conseguiram disfarçar bem tanto a relação quanto a felicidade esfuziante que sentiam.

- Bem, meninos. Agora, vou para o meu escritório, porque eu ainda tenho muita coisa acumulada pra fazer. Selton, fique a vontade, a casa é sua.

- Eu vou, Sueli – ele disse, dando um sorriso maldoso pra Rafael, sem que ela percebesse – Obrigado.

- A gente também vai subir daqui a pouco – Rafael disse, na tentativa de distrair sua mãe da malícia do namorado - Só vou lavar a louça.

- Ah! Obrigada, meu anjo – ela deu um beijo na testa do filho e disse – Até mais meninos.

- Até, mãe.

Sueli foi para seu escritório e Rafael começou a juntar os pratos e talheres para lavá-los.

- Garoto responsável – Selton caçoou – Lavando a louça pra mamãe.

- Deixa de ser chato.

- Só estou de brincadeira com você.

Rafael pegou tudo e colocou na pia, abriu a torneira e jogou detergente neutro na esponja.

- Vamos dar uma volta mais tarde? – perguntou.

- O que acha de pegarmos um cinema mais tarde? – Selton sugeriu.

- Cinema? Muita... gente, não? – Rafael disse.

- Ah! Dá pra ficar de boa no escurinho...

Rafael chiou:

- Fala baixo! Meu irmão vai te ouvir!

- Desculpa. Ok, cinema, não...

- Por enquanto – Rafael ressalvou.

- Lanche?...

- Parece uma boa. Mas lanchonete só abre mais a noite.

- Qual o problema?

- Sei lá... Seus pais não vão achar estranho você ficar o dia inteiro fora? O fim de semana na verdade.

- Está querendo se livrar de mim, Rafa? – Selton fez charme.

- Claro que não. Só fico preocupado de depois você ficar de castigo e não poder mais me ver – Rafael sussurrou.

- Mesmo que eu fique de castigo, ainda posso te ver na escola.

- E eu esperando algo mais romântico...

Foi a vez de Selton chamar-lhe a atenção

- Cuidado...

- A gente pode decidir isso mais tarde?

- Claro. Aqui, você tem razão. Vou em casa dar alguma satisfação e nos falamos depois?

- Tudo bem. Vou lá abrir o portão pra você.

Selton chegou perto do namorado e deu um beijo discreto nos lábios.

- Não precisa, meu lindo – ele sussurrou – Eu sei o caminho. Até mais tarde.

- Falou, cara – eles se despediram em voz alta, pra Alex ouvir da sala.

Apertou-lhe o peito se despedir de Selton daquela maneira, contudo, entendia que não dava pra ser de outro jeito. Não podiam correr o risco de Alex ou Sueli entrar na cozinha e pegá-los no maior amasso. Viu seu namorado se afastar, passando pela porta e sumindo no corredor; o ouviu falando com Alex. Ficou com medo que, talvez, Selton nunca mais voltasse, que se tocaria de que não deveria dar trela pra ele e que terminasse da próxima vez que se reencontrassem. Então, viu que não passava de um medo infantil, afinal, foi o próprio Selton quem o pediu em namoro. Enfim, ouviu a porta da sala se fechar. Selton tinha ido.

Voltou a se concentrar na louça que estava lavando. Tirava as sobras de comida, jogava-as no lixo, deixava o prato em baixo da água corrente, passava a esponja algumas vezes e, quando estava satisfeito com a limpeza, colocava-o no escorredor. Repetiu isso, sem perceber que estava fazendo. Rafael se sentia livre, leve e solto, nas nuvens. Mal podia acreditar que estava ficando com o cara que sonhara tanto. Nunca desejou tanto alguém quanto Selton e o teve durante a noite toda e quase o dia todo. Ainda se veriam a noite, mas mesmo assim queria ele naquele instante! Porém, não podiam ficar junto o tempo todo, pois acabariam se cansando um do outro.

Terminou de lavar a louça, secou as mãos no pano de prato e subiu para seu quarto. Olhou para sua cama e para o idiota colchonete armado – literal e figurativamente – e lembrou-se da noite que teve com Selton. Eles dormiram ali, juntos, como namorados. Uma noite linda. Ele sorriu de felicidade, ao recordar cada sensação que experimentou, cada gosto, cada cheiro. Cheiro. “Será que o cheiro dele ainda está no lençol?”, pensou. Deitou-se em sua cama e respirou profundamente. Lá estava, impregnado no tecido macio, o cheiro do corpo de Selton, dando vida a cada memória da noite anterior.

- Que perfume...

Sua viajem foi interrompida pelo som de seu celular tocando. Se não fosse pelo toque especial que tinha colocado pra Ana, ele certamente ignoraria a chamada, mas como era a melhor amiga, ele atendeu tão logo encontrou o aparelho na mochila.

- Alô.

- Rafa? Tudo bom? - perguntou Ana do outro lado da linha.

- Tudo ótimo! - exclamou.

- Nossa! Que voz é essa? Ontem, eu achei que você ia pular de um prédio e hoje você me atende com essa voz maravilhosa?! O que houve?

- Tem como você vir aqui em casa? Não quero falar por telefone, porque pode chegar alguém a qualquer momento e a história é um pouco longa.

- Está bem. Já vou - disse a garota - Só vou arrumar e apareço aí.

- OK. Não demora.

Doze - Erro

Hugo não almoçara. Não tinha estômago pra comer nada. Mesmo que já tivesse brigado com Mônica centenas – se não, milhares – de vezes, ele não se acostumava. Não importava como a briga começasse, ela sempre terminava no mesmo assunto: Júnior, o filho transviado. Mesmo que o filho mais velho não ajudasse muito na convivência familiar, era ingenuidade culpá-lo pela instabilidade conjugal que Hugo e Mônica viviam. Suas brigas já datavam bem antes de Júnior nascer.

Agora viviam sempre em pé de guerra, qualquer coisinha virava motivo pra discutir e toda discussão acabava em Júnior. “Não me espanta que o garoto seja tão desajustado...”, pensou. Se Junior ouvia metade das brigas dos pais – e certamente ouvia – devia viver uma pressão tremenda, sendo sempre citado entre gritos e alguns insultos.

Ele sabia que tinha que mudar. Não podia continuar sustentando aquelas briguinhas com a mulher sem de fato mudar o que estava errado. A mudança pra uma cidade longe de Brasília tinha sido sua idéia, justamente, pra revitalizar a dinâmica familiar. Júnior, claro não teve direito de voto, mas Selton apoiou totalmente a idéia do pai. Aliás, Selton era, provavelmente, o integrante mais maduro da casa. Mônica, como era de se esperar, achava inviável sair de Brasília e queria tentar outras saídas; por exemplo, internar o filho. Tentaram, na verdade. Algumas vezes. Até que a situação se tornou insustentável e se mudaram pra Juiz de Fora.

Hugo não estava zelando apenas pelo bem estar do filho. Ele acreditava que sair de uma cidade grande e estressante faria bem para o seu casamento, para sua relação com Mônica que, apesar dos pesares, ainda era a mulher que ele amava. Na sua cabeça, ninguém se debateria daquela maneira, naquela situação crítica, se não amasse muito o cônjuge.

Ele só esperava que, na sua insistência, não estivesse cometendo um grande erro.

Onze - Almoço Na Casa dos Moreira e Castro

Rafael e Selton desceram para almoçar, quando Alex gritou lá de baixo. Antes pararam no banheiro para lavarem as mãos e então se sentaram a mesa. Alex já tinha se servido e comia em silêncio. Quando o irmão caçula e o amigo passaram pela porta, ele levantou os olhos, sério. Seu olhar cravou-se assustadoramente em Selton.

Rafael percebeu que o irmão estava sério e perguntou:

- O que houve, Lex?

- Nada. Eu não arrumei nada não. Está tudo nas panelas. Podem ficar a vontade.

- Valeu – Selton respondeu.

Os dois pegaram um prato, cada, e passaram a se servir. A comida cheirava muito bem, estava bem quente, expelindo uma fumaça densa e acinzentada. Tinha arroz branco, feijão preto (clássicos), bife que parecia ser de picanha, frito com bastante molho inglês – do jeito que Rafael gostava – e a salada de alface com milho verde, ervilha e tomate. Rafael não era de comer muito e serviu de uma pequena porção de cada coisa. Selton, por outro lado, mesmo que tivesse sido instruído a se servir como quisesse, moderou um pouco. O que despertou a curiosidade de Rafael, mas ele nada comentou. Sentaram-se a mesa, um ao lado do outro. Rafael enchia um uma garfada, enquanto Alex os esquadrinhava.

- E então, pegaram alguma garota no churrasco, ontem? – Alex perguntou.

Selton encarou, Rafael, rapidamente, confuso, e respondeu, hesitante:

- Eu fiquei com uma garota.

- Gostosa?

Até Rafael achou estranho o interesse do irmão.

- Aham – Selton respondeu.

- O que deu em você, Lex?

- Puxando papo, só isso – mentiu.

O que Alex não confessaria era que estava sondando Selton, porque estava desconfiado. Desde que encontrara os vídeos gays no computador do irmão, estivera remoendo o assunto. Decidira ficar de fora e esperar que Rafael assumisse que era gay e com certeza não tocaria nisso. Mas aquela era a primeira vez que Rafael levava um amigo homem pra passar a noite – sem avisar a mãe ou ele mesmo. Era no mínimo intrigante.

- Eh, ela é gostosa, sim.

- É a Débora. Você sabe quem é – Rafael disse, entre os dentes, lembrando-se da cena dela e Selton na piscina.

- Você conhece a Débora?

- De nome e de foto. Vi uma vez no Orkut do meu irmão – Alex explicou rapidamente - E você, Rafa? Pegou alguém?

Antes que ele pudesse responder, Selton falou:

- Se ele pegou, ninguém sabe; mas ele ficou um bom tempo trancado com a Ana, num quarto.

- Selton! – Rafael gritou.

- Sério? – Alex perguntou, incrédulo – Fazendo o quê?!

- Ninguém sabe – Selton riu do desespero de Rafael.

- Então os dois mandaram bem ontem na festa?...

- Mandamos.

- Um de nós com certeza – Rafael resmungou.

- Ele jura que não deu uns pegas na Ana – Selton disse.

“Porque ele está fazendo isso?”, Rafael se perguntou.

- Já conheço essa história – Alex disse, sem dar muita atenção.

- Olá, meninos! – disse Sueli, aparecendo na porta da cozinha – Já vi que temos convidados.

A conversa de Alex e Selton distraiu tanto Rafael, que ele nem ouviu sua mãe chegar.

- Mãe, fala pra esses dois, de uma vez por todas, que eu Ana somos apenas amigos! – Rafael implorou, enquanto Sueli lhe dava um beijo no rosto.

- Ainda essa história, gente? Os dois são só amigos.

- Mas a gente falou que não eram?! Ninguém disse isso, dona Sueli.

- Selton, se você não parar de me chamar de “dona”, juro que vou te tirar esse prato de comida – ela ameaçou, mas não era sério.

- Ok, parei.

- Onde você foi, mãe? – Rafael perguntou, aliviado pela história ele/Ana ter acabado.

- Eu fui almoçar fora e depois fui na casa da Lúcia – ela omitiu deliberadamente que o almoço tinha sido com Pablo e que brigara com ele – Depois que caiu aquela chuva, não deu pra voltar pra casa.

- Eu disse – Selton falou, orgulhoso.

- É a segunda vez que você diz isso sabichão – Rafael disse.

- O Selton dormiu aqui, essa noite – Alex disse. Rafael notou que havia um quê de denuncia na voz do irmão.

- Sério? – ela perguntou, enquanto servia seu prato.

- Éh! A chuva começou a cair e não parou mais – Rafael disse - Aí falei pra ele ficar aqui e esperar a chuva passar.

- Fez muito bem – Sueli se sentou à mesa, ao lado do primogênito – Eu sei que ele mora do outro lado da rua, mas uma chuva daquelas ia molhá-lo todo em questão de segundos. Pra você ficar doente, não custaria muito.

- Eu tenho uma saúde de ferro – Selton se gabou – A última vez que fui ao médico eu tinha uns nove anos.

- Faça o que puder pra continuar assim. Isso inclui não sair no meio de tempestades – Sueli o advertiu.

- Pode deixar.

- E a festa de vocês ontem, como foi?

- Esse assunto de novo, não? – Rafael reclamou. Sabia que voltariam a falar dele e Ana, Selton e Débora. E Essa era a última coisa que queria ouvir. De novo.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Dez - Delirium

Guilherme dormiu como uma pedra. Quando chegara em casa, simplesmente caíra na cama e apagara, como se alguém tivesse girado sua chave on/off; aquela tinha sido a primeira vez em meses que conseguira pegar no sono antes da meia-noite e dormira a ininterruptamente. Sua mãe estava no hospital depois de tentar suicídio. Isso não afetara seu cansaço.

Só quando acordou na manhã seguinte é que pensou em tomar um banho para se limpar do cloro do churrasco e das bactérias que habitam o ambiente hospitalar. Enrolou o estômago com alguma coisa e voltou para o hospital. No caminho, Guilherme só pensava no que havia acontecido, repetindo várias vezes a imagem da mãe desmaiada na cama, pálida feito uma vela. Relembrou como estava sua rotina nas últimas semanas, de como a mãe estava reagindo à depressão. “Devia ter prestado mais atenção”, repreendia-se.

Chegou ao hospital e, ainda com aqueles pensamentos sombrios em sua mente, foi até o quarto em que sua mãe repousava.

Marina aparentava estar ainda mais apática do que quando Guilherme a encontrara desmaiada. Seus cabelos e pele estavam ressecados, os lábios pálidos e as maças do rosto salientadas. Se não fosse pelos monitores conectados à Marina, Guilherme poderia jurar que ela tinha conseguido morrer. Mas o beep constante dizia que seu coração batia calmamente.

Eduardo estava sentado numa poltrona clara, deitado de lado, com um travesseiro prensado contra o braço do sofá, numa posição extremamente desconfortável. Guilherme teve pena do pai por ter que dormir naquele sofá.

- Bom dia – o pai disse, quando o viu entrar.

- Bom dia – Guilherme respondeu – Ela já acordou?

- Não, ainda não. O médico disse que pode levar um tempo.

- É bom mesmo ela descansar um pouco. Às vezes é só isso que ela precisa – Guilherme disse, desanimado, observando a fraca respiração da mãe – Já comeu alguma coisa?

- Já. Fui na cantina mais cedo.

- Pode ir lá, se quiser. Eu fico de olho nela.

- Não. Eu estou bem.

- Você está parecendo um origami, todo dobrando nesse sofá. Pode ir lá, estica as pernas e almoça.

Eduardo titubeou. Foi o suficiente pra Guilherme saber com certeza que o pai realmente precisava dar um passeio.

- Tudo bem. Eu vou lá e já volto. Qualquer coisa, você me chama.

- Sem problemas – Guilherme respondeu, pensando em como, exatamente, o pai queria que o chamasse se alguma coisa desse errado.

Eduardo se levantou e se espreguiçou, colocando as vértebras e articulações no lugar.

- Já volto, filho – quando Eduardo passou ao lado de Guilherme, deu um forte abraçado e beijou-lhe a fronte. Guilherme sentia falta daquelas expressões de carinho, tão raras, mesmo antes da morte de Lucas. Não que seus pais fossem distantes ou frios. Pelo contrário. Ele que não demonstrava necessidade de carinho. Guilherme sempre fizera o possível para se afirmar como independente, mesmo que às custas de alguns mimos.

Quando seu pai saiu, Guilherme assumiu seu lugar no sofá, confirmando que o móvel não poderia ser mais incômodo. Pelo menos pra dormir. Ajeitou-se como foi possível e tirou um livro da mochila que trouxera de casa. “Deus: Um Delírio”, de Richard Dawkins. Ler seria a única maneira de esperar a evolução do quadro clinico da mãe melhorar sem fritar os últimos neurônios sãos em sua cabeça.

Guilherme estava concentrado nas palavras do livro, nas idéias eloqüentes de Dawkins, quando ouviu um gemido. Alarmado, ele se virou para a mãe, mas ela ainda dormia. Mesmo desconfiado, Guilherme voltou sua atenção para o livro, mas agora estava menos concentrado.

- Lucas.

Agora não tinha duvidas. Embora não fosse um som limpo e alto, ele tinha certeza que a mãe estava sussurrando alguma coisa. Chamando o filho caçula.

Guilherme largou o livro sobre o sofá e foi para o lado do leito onde Marina estava.

- Mãe – ele a chamou – Mãe.

- Lucas?... – Marina gemeu, de olhos fechados, como se delirasse em meio a uma febre cruel.

- Não, mãe. É o Guilherme.

- Guilherme? – ela disse, desconfiada – Pra onde seu irmão foi? Ele estava aqui quase ainda agora – sua voz soava com dificuldade, fraca, falhada. Era evidente que seu sistema ainda não tinha se recuperado dos sedativos – Pra onde ele foi?

“Pra onde ele foi?”, essa era a mesma pergunta em sua cabeça.

Guilherme segurou o choro. Ele era bom nisso. Sempre que sentia a emoção estrangular-lhe a garganta, sufocando-o, ele buscava forças em algum lugar desconhecido, mas que nunca lhe faltara. Inspirou rapidamente e segurou o ar nos pulmões, controlando a resposta do corpo em relação aos seus sentimentos. Tinha certeza que qualquer psiquiatra lhe diria que isso não era saudável, mas em sua lista de prioridades, sua saúde emocional não importava naquele momento.

- Ele saiu, mãe – disse, lutando contra o choro – Ele já volta.

- Ah! – ela disse – Fique de olho no seu irmão, Guilherme. Fique de olho nele...

- Vou ficar, mãe. Não se preocupe. Agora, descanse – ele disse, pegando em sua mão, com cuidado para não mexer na cânula do soro, espetada em sua pele.

- Eu vou – Marina gemeu – Estou muito cansada.

Não chegou nem terminar a frase e já tinha caído no sono outra vez.

Nove - Uma Noite

O dia já estava claro. Mas a sala estava imersa numa escuridão pesada, graças as cortinas grossas nas janelas, providencialmente arranjadas para impedir que a luz do dia atrapalhasse as manhãs de folga. No entanto, as cortinas nada poderiam fazer pela sua inconstância enquanto dormia. Envolvido pelo sono e mumificado pelo lençol, Rodrigo virou o corpo, inconsciente do fato que não estava na sua cama e, sim, na beirada do sofá. A gravidade fez o resto. Com um baque surdo, ele se chocou com o chão frio, despertando, confuso e com o ombro dolorido.

“Caramba, como vim parar aqui?”, pensou, habituado ao fato de dormir quase sempre na sua cama.

Aos poucos, os fatos da noite anterior foram emergindo de sua memória nublada pelo sono e se lembrou porque tinha dormido na sala: Laura. Flashes vividos percorriam sua mente. Os beijos trocados, as carícias, os corpos nus. O sexo! Memorável sexo! Fazia muito tempo que não tinha uma transa tão boa quanto aquela. Aliás, aquela colocava todas as outras no chinelo, mesmo com homens. “Talvez esteja no ramo errado...”

Levantou-se, enrolado no lençol que tinha pego depois a pedido de Laura para dormirem no sofá. E por falar nela, onde estava?

- Laura!- Rodrigo chamou. Seu apartamento parecia vazio. Ele foi ao banheiro, onde mais provavelmente ela estaria, e não encontrou ninguém. Deu uma espiada rápida em seu quarto, mas ela também não estava lá. Voltou à sala, pensando que Laura já era crescidinha demais pra brincar de pique-esconde – Laura! - e reparou bem no cômodo. No chão, só estavam as suas roupas, tiradas quase às pressas, horas atrás. Pegou sua calça e camisa, tirando-as do chão, ainda com os olhos atentos para achar qualquer coisa que fosse de Laura. Revirou as almofadas do sofá, sacudiu o lençol, mas nada, nem um pedaço de pano. “Ela conseguiu levar até os brincos...”, impressionou-se.

Ficou jogado no sofá, pelado e com cara de bobo.

- Ela foi embora...

Oito - Fantasma

Rafael e Selton subiram de volta para o quarto. Enquanto Rafael fechava a porta, Selton já tinha se sentado na frente do computador e esperava que terminasse de ligar.

- A gente podia dar uma volta depois – Rafael sugeriu – O dia parece bonito lá fora – e sentou-se na cama, afastado de Selton.

- Ei! – o garoto moreno o chamou, estranhando a distância – Está com medo que eu vá te agarrar e rasgar toda sua roupa?

- Estou com medo do meu irmão chegar e ver a gente perto um do outro. Sei lá... achar que está acontecendo alguma coisa.

- Ele não estaria errado... – Selton constatou.

- Desculpa. Não quero que pense que estou menosprezando você – Rafael disse, angustiado.

Selton lhe deu um sorriso tranqüilizador. Sua vontade era de levantar-se da cadeira e abraçar Rafael, como quem abraça uma criança machuca que chora por um simples arranhão.

- Eu entendo, meu lindo. A gente tem que ser discreto mesmo.

Rafael se deitou na cama, sentindo a alegria esfuziante que acordara com ele aquela manhã sumir.

- Não era pra ser desse jeito! – disse, visivelmente frustrado – Não queria ter que esconder nosso namoro de ninguém.

Selton não respondeu, porque, na verdade, talvez não tivesse nada pra responder. Aquela questão também era nova para ele. Nunca se envolvera com ninguém por tempo suficiente pra pensar naquilo. Ele era bem resolvido com sua sexualidade e por mais recente que fosse, gostava mesmo de Rafael, mas não estava preparado pra contar a ninguém que estavam juntos, principalmente para sua família.

- Olha, a gente não precisa pensar nisso agora, Rafa – Selton disse, tentando acalmá-lo – Vamos só curtir o momento, sem pensar no que os outros vão pensar se descobrirem...

- Você está certo – Rafael respondeu, pouco convencido – Não é hora pra conversarmos sobre esse tipo de coisa.

- Isso realmente o incomoda, não é? – Selton percebeu com certa tristeza.

- Um pouco. Quero dizer... é tão bom o que está rolando entre nós, certo? Por que temos que namorar escondido?

Selton prendeu a respiração, pensando na resposta mais adequada para dar a Rafael.

- Você nunca pensou em contar pro seu irmão e pra sua mãe que você é gay?

- Nunca! Ficou doido?! Eles não aceitariam! – Rafael disparou, quase que imediatamente.

- Ah! Rafa, não sei. Não sei seu irmão, mas sua mãe parece ser tão legal, tão liberal.

Rafael se tocou, então, que nunca tinha conversado com a mãe a respeito de nada parecido, nunca tinha ouvido sua opinião sobre homossexualidade. Ou talvez - só talvez - tivesse tanto medo de saber o que ela pensava que nunca se permitiu prestar atenção.

- Não sei, acho que tive tanto medo de que alguém descobrisse que nunca me permitir dizer nada a ninguém.

- Olha, não estou dizendo que você deva contar tudo agora! Só estou falando, porque sei o quanto você está aflito.

- Eu não vou contar. Ainda não estou preparado pra isso. Pra ser sincero, não sei quando vou estar.

- Não sei se tenho moral pra dizer isso, mas eu acho que um dia, preparado ou não, você vai ter que dizer.

- Eu sei. Não espero mesmo que seja pra sempre. Mas não quero contar e ser discriminado pela minha própria mãe, pelo Alex. Não sem ter pra onde ir ou correr. Quando eu for independente, talvez eu conte. Mesmo que ela não aceite, vou poder seguir minha vida em paz.

Selton mirou bem Rafael, notou sua expressão consternada. Sentiu a culpa espetar-lhe a consciência. Não devia ter dito nada daquilo.

- Me desculpa – Rafael disse - A gente não namora nem há doze horas direito e já estou surtando.

- Era justamente disso que falei ontem a noite. Existem muitas perguntas por trás do que a gente está vivendo – Selton abaixou a cabeça – Eu mesmo não tenho quase nenhuma resposta pra elas.

Os dois ficaram em silêncio, pensativos, tristonhos. Selton se virou para o computador e começou a mexer em alguma coisa. Rafael percebeu, então, que tinha magoado Selton de alguma forma. Ele tinha as mesmas perguntas na cabeça e nem por isso se deixou levar pelo pânico. Selton gostava de viver a vida, sem pensar em problemas que talvez nem existissem.

- Pode dizer: eu sou um babaca – Rafael disse, de repente.

- Claro que não, meu lindo.

- Eu deveria estar feliz e estou melando nosso clima com assuntos que não têm nada a ver.

- Só tenho medo que você não agüente a pressão... – Selton não teve nem coragem de terminar seu pensamento.

Rafael se levantou e segurou a mão de Selton.

- Eu estou surtando, mas não vou deixar você por causa disso. Só estou dizendo que é injusta nossa situação.

- Eu também estou inseguro. Nunca imaginei que fosse querer namorar sério com alguém. Desculpa.

- Vamos esquecer isso. Você mesmo falou que não precisamos pensar nisso agora. Só curtir o momento.

Selton sorriu, vendo o otimismo em Rafael.

Sete - Outros Planos

Domingo.

Para Hugo, pouquíssimas coisas em sua vida cotidiana lhe davam tanto prazer quanto um domingo. Trabalho era a última coisa em que ele pensava naqueles fins de semana tão preciosos. Podia vestir um bermudão qualquer, uma camisa de algodão e chinelo de dedo. Aquele em particular, era ainda mais especial, porque a mudança da família estava oficialmente terminada. Até onde se sabia, tinha sido tudo desempacotado e colocado em seus devidos lugares. Era possível que ainda houvesse pertences isolados em caixas desconhecidas, mas ficariam por lá até que alguém desse falta deles e conseguisse encontrá-los.

Pra não falar das reformas básicas que toda mudança pede: furos nas paredes para quadros, pintura, metais para banheiros e por aí vai. Felizmente, Mônica conseguira se dividir entre o gerenciamento a distância de sua loja em Brasília e a busca por profissionais para fazer a maior parte dos trabalhos manuais que a casa precisava. Se ela não fosse tão desesperada por deixar tudo em ordem, Hugo mesmo teria feito o serviço, mas é claro que levaria meses pra terminar. Não. Melhor assim, porque poderia aproveitar seu domingo sem correr o risco de martelar o dedo ou se cortar um serra ou outros acidentes que facilmente ocorreriam.

Hugo estava no sofá da sala, assistindo algum Grande Prêmio de Fórmula Um – não se interessava por qual, só queria mesmo olhar pra televisão – quando o telefone tocou. Hugo se contorceu para pegar o fone sem ter que sair do sofá.

- Achei que tivesse se esquecido que tem casa – Hugo disse.

Selton nem se incomodou em perguntar como o pai sabia que era ele ao telefone.

- Ainda não esqueci. Mas me dê mais alguns dias – o garoto respondeu, entrando na brincadeira do pai.

- Vai ficar aí para o almoço, acertei?

- Você já pensou em jogar na loteria?

- Jogo toda semana.

Selton hesitou do outro lado da linha.

- Como está a Dona Mônica? Tudo tranqüilo?

- Olha – Hugo virou para olhar sobre o encosto da poltrona, analisando o que podia ver da casa, procurando qualquer sinal da mulher – Seu irmão ainda está apagado, como é de praxe; então, sim, por enquanto ela está tranqüila.

- Ok. Se precisar, grita - Selton disse.

- Ah! Eu vou!

- Até mais, Hugão.

- Até.

A linha ficou muda.

Hugo encaixou o fone na base, com a mesma dificuldade que teve para tirá-lo, e voltou a assistir a corrida. Mas, assim como antes do telefonema, sua atenção não estava não estava na TV. Seu cérebro não registrava nada do que passava na tela; Hugo imaginava outras coisas em sua mente. Ele gostava de sua rotina dominical, só que já fazia um tempo que precisava quebrá-la.

De supetão, levantou-se do sofá, quase tropeçando enquanto ajeitava os chinelos nos pés ao mesmo tempo em que tentava andar. Quando recobrou o equilíbrio e se pôs definitivamente em pé, ele conseguiu chegar ao pequeno escritório que Mônica achou que deveriam ter. Ela seria a maior usuária daquele escritório, porque, ser empresária era trabalhar em tempo quase integral, ainda mais no caso dela, que era viciada em trabalho.

Como naquele momento. Enquanto Hugo pensava em aproveitar seu fim de semana, longe das obrigações estressantes do dia-a-dia num banco, Mônica tinha ficado o sábado inteiro pendurada na internet, consultando sites de imobiliárias porque elas não abriram depois das duas da tarde do sábado e depois de duas semanas, ela ainda não tinha encontrado uma loja que a agradasse para alugar.

Hugo entrou no escritório e ela nem tirou os olhos da tela do computador. Não importava como estavam os problemas conjugais ou os humores, Hugo não podia colocar os olhos na esposa e pensar em como ele era bonita. Mesmo vestida com seu robe de seda rosa e os cabelos ruivos enrolados num rabo de cavalo meio desajeitado, presos com um palito chinês. Os óculos, aliás, eram segredo, ela só os usava em casa. Em público, só lentes de contato.

Ele deu a volta na mesa e observou atrás da mulher os sites que ela estava visitando. Ao seu lado, estava uma caneca e café, quase cheia. Hugo deduziu que a caneca estava ali desde a hora em que a mulher sentou na cadeira, duas horas atrás. Certamente, já estava frio.

Ele segurou a caneca pela asa e levou a boca, mas antes que pudesse, se quer, sentir o cheiro da bebida, as mãos de Mônica o impediram.

- Ei! – protestou – É meu café!

“Só assim pra conseguir um pouco de atenção”, pensou.

- Já está frio, Mônica!

- É assim que eu gosto – e, talvez só por causa do interesse do marido, ela bebeu um gole do café.

Hugo preferiu não discutir.

- Nada ainda?

- É incrível! Não acho nada nessa cidade que me interesse!

Ela a abraçou por trás, colando os rostos.

- Por que você não pára de trabalhar um pouco e aproveita o fim de semana, assim, com seu marido?

Monica se virou, espantada para Hugo. Fazia tanto tempo que ele não lhe propunha fazer nada que soava até como um milagre.

- Aproveitar o fim de semana? Como?

- Podemos sair, almoçar em algum restaurante. Depois, dar uma volta pra conhecer melhor a cidade.

- Eu já rodei essa cidade de cima a baixo, Hugo... - ela disse entediada, voltando a mexer nos sites.

- Ótimo! Assim você me mostra a cidade, porque eu ainda não tive tempo de fazer um tour.

- Sério, Hugo. Tenho muito o que fazer.

- É domingo, Mônica – Hugo pegou a mão da esposa e afastou-a do mouse – Nem Deus trabalhou no domingo!

- Você não acredita em Deus, Hugo.

- É, mas é o que dizem por aí...

- E os meninos? Vão ficar sem almoço?

- Ah! O Selton vai almoçar na casa do amigo dele e o Júnior, bem... ele se vira.

- Esse é justamente o meu medo, Hugo: do Júnior “se virar”!

- O que você acha que ele vai fazer, Mônica?! Ele não conhece ninguém nessa cidade!

- Que a gente saiba, né?! Ele pode muito bem estar escondendo os amiguinhos delinqüentes!

Hugo soltou a esposa, desistindo de almoçar com ela num pacífico domingo. Argumentar com ela quando se entregava a seus delírios paranóicos era impossível e muito frustrante.

- Certo, Mônica – ele disse – Almoço em casa.

- E onde a gente iria, Hugo? Você mesmo disse que não conhece lugar nenhum nessa cidadezinha.

- Mônica, já desisti. Não precisa continuar a conversa – e se virou para voltar pra sala e assistir, de verdade, a corrida.

- Ok – Mônica disse, se levantando da cadeira – Já que você faz tanta questão.

- Não precisa, Mônica! Tenho certeza que, o que quer que você esteja fazendo nesse computador idiota, é mais importante do que passar um tempo com seu marido!

- Claro que não, Hugo! Pare de ser infantil!

- Eu vou – ele disse, ressentido – Pode deixar.

- Eu estou preocupada com o que o Júnior vai fazer se sairmos.

- “Os gatos saem, os ratos fazem a festa”?

- Você sabe como o garoto é!

- Um “delinqüente”, como você já o definiu diversas vezes!

- Mas ele é! Foi por isso que nos mudamos de Brasília, não foi?

Hugo prendeu a respiração, pra se controlar antes que levasse aquela discussão mais adiante.

- Nós nos mudamos pra termos outra perspectiva da vida.

- Parece que não funcionou muito bem, não é? – Mônica provocou.

- Se você parasse de pensar um pouco em si mesma, talvez funcionasse! – Hugo começou a levantar a voz.

- “Pensar em mim mesma”?! Você ouviu uma palavra do que eu disse?! Eu estou preocupada com o Júnior! – Mônica também levantou a sua.

- Não parece, Mônica! Sinceramente! Desde que chegamos em Juiz de Fora, a única coisa que eu vi você fazer foi tentar que nem uma desesperada abrir essa sua filial!

- Eu preciso trabalhar, Hugo! – ela o interrompeu.

- E seu filho precisa mais do que a sua preocupação, Mônica! Precisa de você! Que você faça alguma coisa por ele! Mas você nunca está aqui, está sempre dando um jeito de evitá-lo, de tratá-lo como... como se fosse indigno do seu tempo!

- Eu amo o meu filho! Meus filhos! Os dois! – Mônica disse, com lágrimas brotando nos olhos. Nada a machucava mais do que diminuir seus sentimentos maternos.

- Demonstre isso, Mônica, ao invés de chamá-lo de “delinqüente”! – aquela discussão poderia durar horas, e Hugo não estava interessado nisso – Quer saber? Desculpa ter te tirado do seu trabalho. Sinto muito. Eu só queria passar um domingo com a minha esposa, coisa que não faço há muito tempo. Claramente, eu estava errado.

Ele deu as costas, sem dar tempo que ela rebatesse, revidasse, ou tentasse de qualquer forma continuar a briga.

Ao se ver sozinha no escritório, Mônica percebeu a estupidez daquela discussão. Todas eram assim. Estúpidas. Mas não tinha como voltar atrás. Ela ajeitou o robe, soltou o cabelo e o prendeu novamente. Tomou um gole do seu café, pra se concentrar no que tinha que fazer. Achar uma boa loja pra alugar.