quarta-feira, 30 de junho de 2010

Trinta e Cinco - De Serviço

Já era noite e mesmo que o quartel onde Rodrigo servia fosse bem próximo à área centra da cidade, naquele horário, não havia qualquer movimento na rua. Alguns carros passava vez ou outra e sumiam rápido na escuridão. Díade semana, nem o bar na outra esquina tinha vida; tão logo os últimos clientes saiam, as portas se abaixavam.

Aquele devia ser o serviço mais enfadonho de todo o exército. Montar guarda. Ficaria uma boa parte da noite de pé, com um fuzil na mão, vigiando a entrada e saída de pessoal, o que, àquela hora da noite, não seria ninguém.

Rodrigo já estava de pé do lado de fora da guarita há duas horas e não percebera a passagem do tempo, desde que o trânsito de pessoas cessara. Sem nada para chamar sua atenção, desligou-se do mundo. Ainda pensava naquela mesma manhã, quando literalmente roubara a cueca de Alex. Enquanto o amigo se arrumava na sala, Rodrigo terminava a punheta que começara no quarto, com medo que amigo entrasse no banheiro procurando a cueca e o pegasse sentado no vaso, nu, agarrado ao pau, se masturbando com o nariz enfiado na peça sumida. Quanto mais pensava nisso, mais intenso ficava seu tesão. Gozara horrores despejando toda porra no vaso. Depois do orgasmo, ficara decepcionado por não ter sido pego com a boca na botija; talvez fosse exatamente isso que precisasse para conseguir a transa da sua vida.

De pé, na guarita do quartel, lembrava-se daquela manhã, sentindo o pau ficar duro, pela milésima vez e as bolas doerem de tesão. Tudo isso porque a cueca roubada passara o dia inteiro no bolso de sua farda e desde que saíra de casa não teve tempo para se “aliviar”. Agora que estava de serviço, tinha que se segurar e tentar disfarçar o volume na calça, porque não podia correr o risco de ser pego de barraca armada. Sorte que seu oficial só passava ali para inspecionar a guarda de duas em duas horas, quando os soldados trocavam de posto. Para sua sorte, isso estava prestes a acontecer, com sorte, poderia voltar até o prédio do alojamento e, com sorte, aproveitar parte do seu tempo de descanso para aliviar o tesão que estava sentindo, o banheiro da guarita seria muito arriscado.

Quando a troca da guarda aconteceu, Rodrigo pediu ao seu oficial permissão para ir ao prédio do alojamento. Tão logo a permissão foi concedida, Rodrigo atravessou o estacionamento escuro às pressas, passou por outros postos de guarda sem qualquer empecilho, apenas batendo uma continência bem informal. Seguindo por corredores mal iluminados, Rodrigo chegou ao banheiro do alojamento. Sem se importar muito com barulho, ele fechou a porta e se fechou em um dos reservados.

Respirou aliviado. Estava sozinho. Tudo que ouvia agora era o silêncio, imerso na semi-escuridão. Enfiou a mão no bolso e tirou a cueca de Alex. Seu coração palpitava fora de compasso, quase como se tocasse um artefato de poder milagroso. Reverenciava aquele pedaço de pano com fervor. Sentia-se obcecado. Sentia-se tomado por um tesão sem controle.

Abriu a fivela do cinto e deixou a calça cair até o tornozelo, se amontoando acima as botas. Sem muita delicadeza, apertou o pau e começou a se masturbar, como naquela mesma manhã, com força, intensidade, desejo, paixão. O cheiro do saco de Alex na sua cara o deixava louco, inebriado, viciado. Deixou todo seu tesão aflorar, sem medo, sem pudor, apenas um pouco de comedimento para não acabar gritando no meio do quartel. Precisava gozar logo para voltar ao serviço.

De pé de frente para o vaso, ele levava a diante sua punheta desesperada, tão imerso naquele desejo que não percebeu que a porta do banheiro fora aberta e alguém entrava pé ante pé, silenciosamente. A mão de Rodrigo batia contra sua virilha, fazendo um som parecido com uma salva de palmas, o suor começava a brotar dos poros e a respiração curta lhe mandava oxigênio em curtas rajadas. A cabeça do pau em riste, bem acima do vaso, para evitar lambanças inconvenientes. Estava bem perto de gozar quando a porta do reservado se abriu de repente.

Primeiro sentiu o terror. Olhou através da parca claridade e logo reconheceu a silhueta do seu oficial da guarda, o Tenente Gomes. O susto foi tão grande que seus músculos não responderam a nenhum de seus comandos para se mover, esconder a cueca na mão, guardar o pau – agora em declínio – ou vestir a calça. A situação não poderia ser mais vexatória, não pensava em nada que pudesse dizer para se justificar.

Tenente Gomes era um homem bem formado, com ombros largos e encorpado, não muito mais alto do que Rodrigo. Tinha o rosto grande, quadrado, de olhar quase sempre severo, cabelos bem raspados e acinzentados. Seus olhos pequenos brilhavam na escuridão.

- Ah! Soldado... – Gomes lamentou. Mas não era verdade, era um tom de fingimento. O Tenente deu um passo em direção a Rodrigo, que recuou e se viu sem muito lugar pra onde correr. Lentamente, Gomes estendeu a mão e com força segurou o punho do soldado que apertava a cueca roubada. Rodrigo resistiu mas o tenente era mais forte que ele. – Eu sempre soube que você era um viadinho pederasta – e o empurrou, fazendo-o sentar no vaso.

Rodrigo estava mudo, estático. Seus neurônios não respondiam direito.

Tenente Gomes o olhava com superioridade, com arrogância e um sorriso sádico e medonho. Sem fazer barulho, ele abriu a fivela do cinto e correu o zíper da calça. Só então Rodrigo começou a entender o que o Tenente queria.

Gomes enfiou a enorme mão dentro da calça e revelou a mala. Seu pau meia bomba pulsava, dando sinais de vida.

- Chupa, soldado – ordenou.

O terror de Rodrigo sumiu e o tesão desmedido tomou controle de seu corpo outra vez. Não era quem ele queria, nem perto disso, mas não respondia mais por seus atos.

Ele apenas bateu a porta do reservado.

Trinta e Quatro - Contra a Parede

Quando Guilherme voltou à sala, seu pai já tinha terminado de lavar os pratos e os talheres e estava sentado no sofá assistindo Jornal Nacional.

- Demorou – Eduardo disse – Não me diga que se perdeu no apartamento.

Guilherme não riu. Ele estava mais sério do que o habitual, mãos no bolso e olhos cerrados.

- Eu sei porque você me convidou para jantar, hoje.

Eduardo também ficou sério.

- Do que você está falando, Guilherme?

- Eu vi as escovas na pia e as camisinhas no armário, pai. Ou você achou que eu não as notaria?

Eduardo, pego de surpresa, ficou sem reação. Depois, engoliu em seco.

- Eu não sei o que dizer, Guilherme.

- Que tal: “eu tenho transado, feito sexo com outras pessoas além da sua mãe”?

- Outras pessoas, não?! - Eduardo, disparou, ofendido – Eu não saio por aí transando com Deus e o mundo!

- Por que você não disse, logo de uma vez, se foi pra isso que você me chamou?

- Porque percebi que minha vida sexual não diz respeito a você?! – Eduardo gritou.

Guilherme pensou bem no que o pai tinha dito.

- Concordo com você. Sua vida sexual não me diz respeito. Mas você me chamou aqui, me convidou pra jantar e fez meu prato favorito. O que significa que você estava disposto a discutir alguma coisa comigo e não era sua vida sexual. Certamente, não é a minha também...

Eduardo olhava o filho, com o evidente arrependimento estampado no rosto. Tinha se esquecido que Guilherme era um observador nato e inteligente para além dos limites comuns, qualquer mínimo detalhe lhe revelava-lhe uma história inteira.

– Eu acho que virou mais do que “só sexo” – Guilherme continuou - e você precisava ser honesto com a sua família. E a única pessoa sã na família que restou sou eu.

- Eu não queria que acontecesse, Guilherme – Eduardo se defendeu, com lágrimas nos olhos - Faz quase um ano que seu irmão se foi, que sua mãe me expulsou da vida de vocês. Você tem idéia do quanto é solitário aqui, tendo que lidar com abandono, com luto, com saudade?

- Não estou te condenando, pai – Guilherme o interrompeu – Eu entendo o quanto essa situação toda é ruim e fica mais fácil com alguém do lado. Quando você me chamou, logo imaginei que você diria algo parecido, que tinha conhecido alguém, que estava em um relacionamento.

- Nada te escapa, não é mesmo?

- Nada! – Guilherme afirmou em tom definitivo. Ele tirou a mão direita do bolso, com cuidado e colocou os dois barbeadores em cima da mesa – Quem é ele, pai?

Trinta e Três - Deletar

Ana já tinha ido embora. Rafael subira para o seu quarto, ainda se sentindo pesado, remoendo o gosto daquele estranho fracasso.

“Talvez eu não seja capaz de tirar isso de dentro de mim. Talvez nem deva... Talvez seja algo pra guardar só comigo, se não quiser ficar sozinho. Até porque, logo esqueceria aquela história de estar apaixonado por Selton e, se tudo der certo, até mesmo de garotos de uma forma geral. Não precisaria contar nada para Ana, porque, no fim das contas, não haveria nada para contar. Não haveria nada para contar a ninguém”

Rafael ligou seu computador, com uma idéia fixa na cabeça: enterraria de uma vez por todas aquela história de gostar de garotos e começaria pelos vídeos. Assim que o computador concluiu a inicialização, Rafael clicou em “Meus Documentos” e abriu a pasta em que guardava seus vídeos. Era uma lista imensa, vários e vários vídeos, baixados durante a madrugada acompanhados de muita punheta e porra. Aquilo estava para acabar, cair em esquecimento. Rafael apertou ctrl +a e todos os arquivos dentro da pasta foram selecionados. A partir daquele dia esqueceria a existência de pornografia. Gay pelo menos. Ainda havia um imenso mar digital de pornografia hétero para se divertir.

Com certa hesitação, ele apertou o Del. A caixa de mensagens apareceu e um a um os vídeos foram deletados. Ia demorar deletar centenas de vídeos.

- O que você está fazendo? – Alex perguntou.

Rafael se assustou e num reflexo já muito bem treinado, ele apertou Windows + d, e todas as janelas abertas foram minimizadas.

- Só... deletando alguns arquivos – ele respondeu, sobressaltado – Não era pra você estar trabalhando?

Alex ainda vestia a farda camuflada, a boina verde e o coturno pesado, que lhe cobria até a metade da canela. Era impressionante ver como o irmão ficava bem fardado.

- Que horas você acha que são? – Alex respondeu.

Rafael girou na cadeira e viu. Já era bem tarde.

- Achei que fosse mais cedo.

- Acabei de chegar.

- Hmm... – Rafael murmurou – Bem vindo – Alex raramente subia ao segundo andar pra dar “oi” para ele. Quando chegava, ia direto para o banho e depois saia para encontrar a namorada. Quando muito, ficava pra jantar. Observando melhor, Alex parecia um pouco tenso, com olhos bem abertos, e respiração curta – Tem alguma coisa errada?

Alex hesitou.

- Na verdade tem – Alex entrou no quarto do irmão, sentou-se em sua cama, puxou com força a cadeira em que Rafael estava sentando e colocou frente a frente. Rafael encarou o irmão mais velho com um olhar assustado.

Alex pensou por horas a fio no que deveria fazer a respeito da sexualidade do irmão. O que Rodrigo tinha lhe dito, serviu para alguma coisa. Concordou que não era hora de envolver a mãe no assunto, até descobrir o que Rafael pensava de si mesmo. E a única maneira de saber isso era conversando com ele. E como Rodrigo também tinha dito, não poderia confrontar o irmão até saber o que passava na sua própria cabeça. No último dia, pôde esfriar as idéias e organizá-las. Ainda não era o que esperava da vida do irmão, mas quem era ele pra dizer alguma coisa? Bater, espernear, xingar, ignorar não tornaria as coisas mais fáceis, não mudaria o irmão. E se mudasse, talvez mudasse pra pior. Tudo que podia pensar naquele momento era tornar as coisas mais fáceis para Rafael, ou no mínimo, menos dolorosas.

Olhando nos olhos do irmão, ali, no quarto dele, pensou “E vai ser menos doloroso contar que descobri por acaso os vídeos no computador?” Talvez não houvesse tempo para explicar tudo o que precisava, para fazê-lo entender que foi um acidente. “E se ele quiser contar? E se ele estiver se preparando para contar pra gente e acabar atropelando o tempo dele?”

- Alex, o que foi? – Rafael perguntou – Você está me assustando.

“Eu estou assustado” As palavras não saiam. Era muito mais complicado do que antecipara. Já tinha enfrentado treinamentos pesados no exército, testes de sobrevivência, salto de pára-quedas, e nada do que passara tinha o deixado tão nervoso quanto naquele momento.

Alex mordeu o lábio, percebendo que ele mesmo ainda não estava pronto para aquela conversa. Mas já tinha alarmado o irmão, precisava de alguma coisa pra falar.

- É que venho pensado há algum tempo... em comprar um par de alianças pra mim e pra Carla.

O olhar de espanto de Rafael sumiu, deixando lugar para um sorriso de felicidade.

-Sério?! As coisas estão sérias assim?

Alex abaixou a cabeça, envergonhado. Realmente, era uma surpresa pensar em alianças, ele nunca ficava com a mesma garota por mais de algumas semanas e Carla vinha resistindo por mais de meses, sem dificuldade alguma. Alex gostava de verdade a garota e antes de achar os vídeos do irmão, estava pensando em comprar um par de alianças e oficializar o namoro dos dois.

- Éh, só que eu nunca fiz isso. Não sei se está cedo, se devo esperar um pouco mais.

Rafael riu:

- Alexandre Moreira Silva e Castro, você está me pedindo conselhos amorosos, porque está inseguro?! Meu Deus! Um sinal do apocalipse!

- Ah! Qual é, Rafael!

- Fala sério? Quando passou pela sua cabeça que você passaria por aquela porta, faria toda essa entrada dramática, pra me perguntar o que eu acho de você dar uma aliança para uma garota?!

Mesmo que “toda aquela entrada dramática” não fosse por causa daquele assunto, Alex tinha que admitir que nem em seus mais loucos devaneios podia imaginar aquilo acontecendo.

- Ok. Você venceu. Mas o que acha?

Rafael tentou ficar sério e pensar no que o irmão lhe pedira por um instante, sem perceber que ele não estava ali para isso:

- Ignorando o fato de que eu também não entendo muito desse assunto, acho que se você gosta mesmo dela, não existe essa história de cedo.

- Eu gosto mesmo dela – Alex admitiu, corando.

- Aí está sua resposta.

- Valeu, mano – Alex se levantou, em partes arrependido de não ter feito o que queria, mas também feliz por ter conseguido uma conversa sincera com o irmão. Talvez aquele fosse o primeiro passo pra conseguir falar do que realmente importava. Quando estava chegando a porta, ele se virou – Quando você estiver gostando de alguém, qualquer pessoa, qualquer pessoa mesmo, pode contar comigo se quiser conselhos, desabafar... qualquer coisa... Ok?

- Alex, você está me assustando. De novo.

Alex sorriu, e desceu para tomar seu banho.

Rafael voltou para o computador e viu que seus vídeos já tinham sido todos deletados, sem jamais suspeitar que ele não tinha sido o único naquela casa a vê-los.

Trinta e Dois - Duas Escovas

A lasanha estava deliciosa, exatamente como Guilherme se lembrava. Tiveram que servir seus pratos na cozinha para terem espaço na mesa da sala, já que os pratos entrariam numa luta injusta contra a travessa de lasanha. Apesar de meio espremidos, o jantar tinha sido agradável. Guilherme e o pai trocaram conversas interessantes, principalmente sobre os filmes que não assistiram juntos nos últimos meses, coisa que os dois faziam quase sempre. Evitaram falar de qualquer tipo de problema para não estragar aquele momento raro de paz. Ao terminarem de jantar, ainda ficaram sentados um tempo, esperando a comida se acomodar no estômago. Lasanha era uma maravilha, mas pesava muito.

À medida que o tempo passava, Guilherme se tocava que talvez estivesse errado; talvez o jantar não fosse um pretexto para uma conversa complicada. Era apenas um jantar de pai e filho separados pela tragédia familiar. Difícil de acreditar, principalmente quando sua intuição gritava que havia segundas intenções no convite do pai. A hora crítica, no entanto, se aproximava. Ele sabia que o pai não tocaria em nenhum assunto delicado enquanto comessem; esperaria até o fim do jantar para terem a temida conversa.

Suas especulações caíram por terra quando Eduardo disse:

- Você põe os pratos na pia e guarda a Lasanha no forno, enquanto escovo os dentes?

Guilherme escondeu sua surpresa e fez o que o pai pediu. Empilhou os pratos e os talheres e se dobrou para pra passar entre a mesa e a poltrona; deixou-os na pia e com cuidado pra não derrubar a pesada travessa de lasanha, abriu o forno e a guardou.

- Deixei uma escova nova pra você em cima da pia - Eduardo comentou, voltando a sala.

- Obrigado - Guilherme respondeu - Só vou lavar a louça...

- Deixa isso aí, que daqui a pouco eu arrumo.

Guilherme nem esperou o pai insistir. Odiava lavar louça e se tinha alguém se prontificando a fazê-lo no seu lugar, ele não pestanejava.

- Ok – Guilherme disse.

Enquanto o pai arregaçava as mangas pra começar a limpar os pratos sujos, Guilherme foi ao banheiro. Ironicamente, o banheiro era espaçoso, até demais. Se o arquiteto daquele prédio tivesse sido menos generoso com o banheiro, teria mais espaço, por exemplo, na sala, onde ele era definitivamente mais necessário!

Guilherme viu a embalagem inviolada da escova que o pais mencionara em cima da pia. Pegou-a e a abriu, tirando o produto; a pasta de dentes estava num copo de plástico, junto com outras duas escovas. Guilherme espremeu o tubo, tirando a pasta branca e espalhando-a nas cerdas da escova nova que segurava em sua mão, mas aquelas duas outras escovas no copo estavam o incomodando.

Começou a limpeza bucal, distraidamente, ainda olhando para o copo. Uma delas estava bem usada, com as cerdas um pouco tortas e a outra tinha sido usada também, mas com menor freqüência. Seu pai morava sozinho, não tinha razão para ter duas escovas no banheiro. A única explicação plausível era que mais alguém freqüentava o apartamento. Mas outra coisa não tinha explicação...

Ele lavou a espuma mentolada e cuspiu-a. Tinha algo estranho naquela imagem. Ele precisava investigar mais, saciar sua curiosidade.

- Pai! O sabonete acabou! – ele gritou.

- Tem mais no armário! Pode pegar.

Pronto! Agora tinha uma desculpa pra abrir o pequeno armário com o espelho, acima da pia. Mal virou a portinhola e deu de cara com uma caixa de preservativos. Não chegou a ser exatamente uma surpresa. Já imaginava que, depois de tanto tempo afastado da esposa, o pai estivesse “suprindo” suas necessidades. Guilherme pegou a caixa e viu que já tinha mais da metade vazia; esticou os olhos para a lixeira ao lado do vazo. Exceto pelo papel higiênico amassado e fios dentais usados, não havia nada de interessante no lixo, além da embalagem preta aberta e do que Guilherme reconheceu como o extremo de uma camisinha usada.

- Interessante – ele sussurrou.

Tinha uma olhada pendurada na porta do Box e outra esticada num gancho ali perto. Com as mãos, ele apertou as duas e elas ainda estavam úmidas.

Tudo que notara já era esperado. As escovas, as camisinhas, as toalhas molhadas. Desde que o pai o convidara para jantar, imaginava que anunciaria algo daquela gravidade e, como ainda não dissera nada, talvez tivesse perdido a coragem. No entanto, restava uma coisa que não se encaixava. Logo que abriu a porta do armarinho, viu dois barbeadores descartáveis guardados nas prateleiras...

Trinta e Um - Lasanha

Guilherme tinha conseguido convencer uma tia sua a ficar de olho em sua mãe para que pudesse comparecer ao jantar que tinha prometido ao pai. Não queria deixá-la mais uma noite sozinha e poderia demorar ainda mais pra voltar naquela noite em especial. Sabia que aquele jantar era apenas um pretexto para uma conversa séria, que poderia ter repercussões ainda mais graves. Guilherme já imaginava do que se tratava, mas não queria colocar os carros na frente dos bois. Embora não se enganasse com freqüência, havia precedentes de seus erros. Lucas era prova disso.

Eduardo morava num apartamento quase tão pequeno quanto Guilherme e Mônica. O filho, ao entrar, teve a impressão de que os dois morreriam sufocados ali. A sala era minúscula com uma mesa redonda pra uma pessoa, um sofá de dois lugares estava espremido contra a parede, porque a estante era grande demais para estar ali. A televisão de vinte polegadas parecia desproporcional a tudo ao redor.

Eduardo percebeu o olhar espantado do filho e disse:

- É meio complicado pagar dois aluguéis... Tive sorte de encontrar esse apartamento.

- “Apertamento”, você quis dizer!

- Sim, é meio apertado, mas pra mim basta. E é uma situação temporária...

Guilherme olhou para o pai, vendo o brilho otimista tão peculiar.

- Claro – concordou, sem muita convicção de que as coisas mudariam.

- Eu estou terminando de cozinhar a lasanha. Quer me ajudar a montar?

Guilherme não conseguiu conter o sorriso, desta vez, sincero. Eduardo não era nenhum chef da alta cozinha, mas tinha uma mão abençoada pra fazer todo prato simples que se pode imaginar. Foi com o pai que aprendera a fazer o mexido perfeito e também um macarrão ao alho e óleo que surpreenderia qualquer pessoa acostumada com comidas sofisticadas. Mas de tudo que sabia fazer, a lasanha era “especialidade” de Eduardo. Antes da morte de Lucas, pelo menos uma vez por mês, ele expulsava Marina da cozinha e preparava uma lasanha à bolonhesa espetacular. Guilherme ficou feliz por finalmente comer uma lasanha que não fosse congelada.

- Mãos à massa.

Guilherme lavou as mãos na pia minúscula e ajudou o pai a preparar o molho de tomate, fatiar a mussarela e o presunto enquanto a carne moída cozinhava.

- E como vão as coisas no colégio? – Eduardo perguntou.

- Vão bem – Guilherme respondeu, espalhando o molho de tomate sobre a última camada de macarrão - Estou mais preocupado com o vestibular do ITA do que passar de ano.

- Você vai mesmo fazer essa prova?

- Por quê? Acha que eu não consigo?

- Guilherme, se eu conheço alguém que passaria nessa prova é justamente você – Eduardo disse com certa dose de orgulho – É que com toda essa história do seu irmão e essa crise da sua mãe, achei que você tivesse mudado seus planos.

Guilherme tinha, sim, pensado em mudar seus planos. Se passasse no vestibular do ITA, teria que mudar de cidade por uns bons anos e, desde que se viu como babá de Marina, se perguntou se seria uma boa idéia ir embora. Mas tinha que considerar outras coisas também:

- Lucas não ia querer que eu desistisse da prova e sobre a mãe, como você disse, é uma situação temporária...

- É, sim, filho.

- E você, pai? Como tem ido sozinho? – Guilherme perguntou, mas por educação do que preocupação. Sabia que não estava sendo fácil para o pai.

- Eu tenho me virado bem. Tive que entrar na academia pra compensar toda porcaria que tenho comido, meus sábados foram tomados pelas faxinas que não tenho tempo de fazer durante a semana. No fim, todo esse choque parece servir de alguma coisa, afinal, estou ficando menos preguiçoso.

- Reparei mesmo que você está bem mais em forma do que antes. Parece até mais novo, mais feliz – Guilherme disse, fingindo uma nota de ressentimento. Não estava irritado com a felicidade misteriosa do pai, mas precisava saber o que realmente se passava e ele sabia que a culpa podia ser uma forte aliada na hora de desencavar histórias.

- Não me entenda mal, Guilherme – Eduardo disse a tristeza emergindo em seu rosto, as lágrimas brotando – Eu ainda choro a morte do seu irmão, ainda passo minhas noites imaginando como seria se tivéssemos feito tudo diferente. Sinto muito a falta do Lucas, de você e da sua mãe. Mas a morte dele fez tudo mudar, e, ao contrário da sua mãe, estou tentando ver o lado bom dessa mudança, por mais dolorosa que ela seja.

- Não estou te culpando, pai – Guilherme disse, cabisbaixo – Pelo contrário. Também acho que temos que fazer o melhor possível com o que está ao nosso alcance.

Eduardo admirou a hombridade do filho, que ainda tão novo parecia um adulto.

- Eu sei que tem um peso muito grande sobre você, filho. Eu sei que sua mãe não quer olhar pra mim nesse momento, mas saiba que pode contar comigo pra dividir esse fardo. Nem que seja só pra vir conversar comigo.

Guilherme olhou para o pai e começou a repensar suas próprias atitudes. Talvez o pai estivesse “feliz” justamente porque o manteve afastado todo aquele tempo da pressão que era conviver com a mãe mentalmente abalada. Eduardo via a tristeza nele e isso era inegável; mas era como olhar um iceberg. O pai não sabia que a maior parte do sofrimento adormecia embaixo d’água. E como dizem, ignorância é felicidade. E, assim sendo, ele não podia tirar aquela felicidade do pai, que estava lhe fazendo tão bem; só traria preocupação e estresse há alguém que já tinha que sofrer com o abandono e perda de um filho. Era desnecessário fazê-lo passar por mais tormento.

- A lasanha já está montada. É só colocar no forno. – Guilherme desconversou.

- Você põe pra assar enquanto eu tomo aproveito pra tomar um banho.

- Vai lá, pai.