quarta-feira, 30 de junho de 2010

Trinta e Um - Lasanha

Guilherme tinha conseguido convencer uma tia sua a ficar de olho em sua mãe para que pudesse comparecer ao jantar que tinha prometido ao pai. Não queria deixá-la mais uma noite sozinha e poderia demorar ainda mais pra voltar naquela noite em especial. Sabia que aquele jantar era apenas um pretexto para uma conversa séria, que poderia ter repercussões ainda mais graves. Guilherme já imaginava do que se tratava, mas não queria colocar os carros na frente dos bois. Embora não se enganasse com freqüência, havia precedentes de seus erros. Lucas era prova disso.

Eduardo morava num apartamento quase tão pequeno quanto Guilherme e Mônica. O filho, ao entrar, teve a impressão de que os dois morreriam sufocados ali. A sala era minúscula com uma mesa redonda pra uma pessoa, um sofá de dois lugares estava espremido contra a parede, porque a estante era grande demais para estar ali. A televisão de vinte polegadas parecia desproporcional a tudo ao redor.

Eduardo percebeu o olhar espantado do filho e disse:

- É meio complicado pagar dois aluguéis... Tive sorte de encontrar esse apartamento.

- “Apertamento”, você quis dizer!

- Sim, é meio apertado, mas pra mim basta. E é uma situação temporária...

Guilherme olhou para o pai, vendo o brilho otimista tão peculiar.

- Claro – concordou, sem muita convicção de que as coisas mudariam.

- Eu estou terminando de cozinhar a lasanha. Quer me ajudar a montar?

Guilherme não conseguiu conter o sorriso, desta vez, sincero. Eduardo não era nenhum chef da alta cozinha, mas tinha uma mão abençoada pra fazer todo prato simples que se pode imaginar. Foi com o pai que aprendera a fazer o mexido perfeito e também um macarrão ao alho e óleo que surpreenderia qualquer pessoa acostumada com comidas sofisticadas. Mas de tudo que sabia fazer, a lasanha era “especialidade” de Eduardo. Antes da morte de Lucas, pelo menos uma vez por mês, ele expulsava Marina da cozinha e preparava uma lasanha à bolonhesa espetacular. Guilherme ficou feliz por finalmente comer uma lasanha que não fosse congelada.

- Mãos à massa.

Guilherme lavou as mãos na pia minúscula e ajudou o pai a preparar o molho de tomate, fatiar a mussarela e o presunto enquanto a carne moída cozinhava.

- E como vão as coisas no colégio? – Eduardo perguntou.

- Vão bem – Guilherme respondeu, espalhando o molho de tomate sobre a última camada de macarrão - Estou mais preocupado com o vestibular do ITA do que passar de ano.

- Você vai mesmo fazer essa prova?

- Por quê? Acha que eu não consigo?

- Guilherme, se eu conheço alguém que passaria nessa prova é justamente você – Eduardo disse com certa dose de orgulho – É que com toda essa história do seu irmão e essa crise da sua mãe, achei que você tivesse mudado seus planos.

Guilherme tinha, sim, pensado em mudar seus planos. Se passasse no vestibular do ITA, teria que mudar de cidade por uns bons anos e, desde que se viu como babá de Marina, se perguntou se seria uma boa idéia ir embora. Mas tinha que considerar outras coisas também:

- Lucas não ia querer que eu desistisse da prova e sobre a mãe, como você disse, é uma situação temporária...

- É, sim, filho.

- E você, pai? Como tem ido sozinho? – Guilherme perguntou, mas por educação do que preocupação. Sabia que não estava sendo fácil para o pai.

- Eu tenho me virado bem. Tive que entrar na academia pra compensar toda porcaria que tenho comido, meus sábados foram tomados pelas faxinas que não tenho tempo de fazer durante a semana. No fim, todo esse choque parece servir de alguma coisa, afinal, estou ficando menos preguiçoso.

- Reparei mesmo que você está bem mais em forma do que antes. Parece até mais novo, mais feliz – Guilherme disse, fingindo uma nota de ressentimento. Não estava irritado com a felicidade misteriosa do pai, mas precisava saber o que realmente se passava e ele sabia que a culpa podia ser uma forte aliada na hora de desencavar histórias.

- Não me entenda mal, Guilherme – Eduardo disse a tristeza emergindo em seu rosto, as lágrimas brotando – Eu ainda choro a morte do seu irmão, ainda passo minhas noites imaginando como seria se tivéssemos feito tudo diferente. Sinto muito a falta do Lucas, de você e da sua mãe. Mas a morte dele fez tudo mudar, e, ao contrário da sua mãe, estou tentando ver o lado bom dessa mudança, por mais dolorosa que ela seja.

- Não estou te culpando, pai – Guilherme disse, cabisbaixo – Pelo contrário. Também acho que temos que fazer o melhor possível com o que está ao nosso alcance.

Eduardo admirou a hombridade do filho, que ainda tão novo parecia um adulto.

- Eu sei que tem um peso muito grande sobre você, filho. Eu sei que sua mãe não quer olhar pra mim nesse momento, mas saiba que pode contar comigo pra dividir esse fardo. Nem que seja só pra vir conversar comigo.

Guilherme olhou para o pai e começou a repensar suas próprias atitudes. Talvez o pai estivesse “feliz” justamente porque o manteve afastado todo aquele tempo da pressão que era conviver com a mãe mentalmente abalada. Eduardo via a tristeza nele e isso era inegável; mas era como olhar um iceberg. O pai não sabia que a maior parte do sofrimento adormecia embaixo d’água. E como dizem, ignorância é felicidade. E, assim sendo, ele não podia tirar aquela felicidade do pai, que estava lhe fazendo tão bem; só traria preocupação e estresse há alguém que já tinha que sofrer com o abandono e perda de um filho. Era desnecessário fazê-lo passar por mais tormento.

- A lasanha já está montada. É só colocar no forno. – Guilherme desconversou.

- Você põe pra assar enquanto eu tomo aproveito pra tomar um banho.

- Vai lá, pai.

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