domingo, 4 de julho de 2010

Cinco - Defensor

Quando Selton voltou, Guilherme já estava vindo em sua direção.

- Quero falar com você – Selton disse, num tom pouco amistoso.

Selton não gostava de ser violento. Gostava de ser amigo das pessoas, de tratá-las bem ou, pelo menos, com o devido respeito. Mas Guilherme tinha ultrapassados certos limites.

Guilherme se surpreendeu, mas não se intimidou com o queixo levantado e os ombros abertos. Ele, na verdade, sorriu.

- Pode falar.

- Eu não sei qual é a sua. Honestamente, não quero saber. Mas se eu souber que você continua falando mal do Rafa, eu vou acertar minhas contas com você.

“Interessante...”, Guilherme pensou. Seu cinismo de Guilherme era imensurável:

- Não tenho idéia do que você está falando, Selton.

- Vou refrescar a sua memória. Por causa daquele seu papo no dia do jogo, eu quase briguei com o Rafael e perdi a amizade dele.

- Vocês parecem bem... Bem até demais, eu diria...

- Ouviu! – Selton deu uma passo a frente, fitando Guilherme nos olhos, com intensidade - Se voltar a espalhar mentiras do meu amigo, a gente vai conversar de novo.

- Acho que você tem visto filmes de gângster demais, Selton. Toda essa coisa de “acerto de contas” é um pouco... ridículo. Não acha, não?

- Já avisei, Guilherme. Fica na sua – e deu as costas pra Guilherme.

- Por que está defendendo o Rafael? Aliás, por que acha que ele precisa de alguém pra defendê-lo?

- Por que ele não quer se defender. Ele se ofende com as coisas que você diz, mas não tem coragem pra revidar.

- E você vai fazer isso por ele? Boa sorte – Guilherme disse, sem jamais de mostrar intimidado – Sabe? Fiquei feliz que tivemos essa conversa.

Guilherme foi embora, deixando Selton trincando os dentes de raiva.

Quatro - Sono

Rafael subiu as escadas do colégio, com um sono irreal. Tinha dormido mais cedo na noite anterior e acordado quinze minutos mais tarde naquela manhã. Talvez o que diziam sobre “quanto mais se dorme, mais sono se sente” fosse verdade, afinal de contas.

Subiu se arrastando, quase empurrado pela massa em movimento de alunos atrasados. Por pouco não errou sua sala. Quanto entrou, quase todos já tinham chegado, inclusive Ana e Selton, que não esperou pela carona habitual de Sueli.

- Olha o Rafa aí! - Selton disse, apertando a mão do amigo sonolento – Guardei seu lugar – e tirou a mochila da carteira de trás.

- Valeu! – Rafael murmurou. Sem animo algum, ele jogou sua mochila na mesa e praticamente capotou na carteira, repousou a cabeça sobre os braços cruzados e lá ficou.

- Que foi, Rafa? Você está bem? – Ana perguntou.

- Não! Estou morrendo de sono – disse, sem levantar a cabeça.

- Não conseguiu dormir essa noite?

- Dormi! Mas ainda estou caindo de sono. Que aula vem agora?

- Física – Selton respondeu.

- Boa noite.

Ana e Selton trocaram um olhar confuso, sem entender direito o que estava acontecendo.

- Não! Acorda! Vai lá na cantina e compra uma Coca pra você acordar! – Selton disse, sacudindo o amigo.

- Não! – Rafael protestou.

- Anda, logo! – ele continuou sacudindo – Eu vou lá com você.

- Me deixa, Selton! Não vou aprender nada mesmo assistindo essa aula! - Selton não deu muita atenção. Continuou cutucando e sacudindo Rafael até que, irritado, ele desistiu e se levantou – Ah! Está bem, está bem!

Rafael foi rastejando, seguido por Selton, pelos corredores.

- Está me vigiando pra ver se não vou dormir no banheiro? – Rafael disse, ao perceber que o amigo estava ao seu lado.

- Êeh, mau-humor! Só vou comprar jujuba! – Selton se defendeu.

- Foi mal, cara! – Rafael se desculpou – Eu não estou mesmo muito bem, hoje, não!

- Relaxa! Todo mundo tem mau-humor quando não dorme direito.

- O pior é que não dormi mal!

- Teve algum pesadelo? Sonho ruim?

- Não que me lembre.

- Fica frio. Daqui a pouco você desperta – os dois chegaram na cantina do colégio e Selton não deixou tempo para Rafael falar – Um drops daquela jujuba e uma Coca 600 – disse, entregando uma nota de dez reais.

- Eu estou com dinheiro aqui, Selton.

- Preciso de troco pro ônibus, Rafa. Aqui sua Coca – e entregou o refrigerante para ele.

Rafael rodou a tampa, e a pressão do gás fez aquele chiado característico.

- O que houve, Selton? - Rafael perguntou.

- Há! – Selton riu – Finalmente trocamos a frase. Geralmente, eu que perguntou “o que houve”.

- Você não está tentando me agradar por causa daquela briga estúpida que tivemos?

- Claro que não, Rafa! Isso é passado. Preciso mesmo do troco. Além do mais, qual o problema em ser legal com você? Principalmente depois que me ajudou a acompanhar a matéria?

“O problema é que estou tentado te esquecer! E ser gentil comigo não ajuda muito!”, Rafael pensou.

- Cara, se você ainda está pensando naquilo, pode esquecer!

- Já disse, Rafa. Só preciso de troco. – Selton disse, sorrindo, mostrando seus dentes perfeitamente brancos.

“Que sorriso...”

- Ok.

O sorriso de Selton sumiu, deixando seu rosto contraído.

- O que foi?

- Nada.

Confuso, Rafael procurou o que poderia ter feito o humor de Selton mudar; assim que se virou, deu de cara com Guilherme, que parecia ir na direção deles.

- Bom dia – Guilherme os cumprimentou.

Rafael e Selton apenas acenaram com a cabeça, só pra não dizerem que eram mal-educados. Guilherme pareceu não se importar com a antipatia dos dois ou fingiu não notar e continuou seu rumo em direção à cantina, enquanto Rafael e Selton voltavam para a sala.

Rafael estava tomando um gole da Coca, quando Selton estancou e disse:

- Vai indo pra sala, Rafa. Vou comprar outro negócio e já chego lá.

- O que houve? – Rafael perguntou outra vez.

Selton achou graça.

- Nada. Já chego na sala.

- Ok – Rafael não entendeu muita coisa, mas preferiu não discutir.

E voltou correndo em direção à cantina.

Três - Ironia, parte II

- Você tinha razão – Lucas comentou chocado, depois de ouvir o relato do irmão sobre a noite em que jantara com o pai.

- Razão sobre o quê? – Guilherme perguntou, sem saber direito do que o irmão estava falando.

- Apreciei a ironia – respondeu, rindo – E foi bizarro também. Eu nunca poderia desconfiar do pai.

- Depois, ele me confessou que também não desconfiava. E logo e seguida disse que nunca se sentiu atraído por outro homem, até conhecer esse cara com quem ele está agora.

- Que, aliás, você não disse o nome.

- O pai também não.

Lucas encostou na árvore, olhando sério para o irmão.

- O que você pensa em fazer?

- Nada, oras. O que há pra se fazer?

- Você sempre faz alguma coisa, Guilherme. Está na sua natureza intervir quando alguma coisa não o agrada. Por isso ainda sente algo de culpa pela minha morte.

- Não sinto culpa! – Guilherme disse, entre os dentes.

- Mentiroso – Lucas rebateu.

- Sorte sua você ser fruto a minha imaginação, ou juro que e daria uma coça.

- Você não tem certeza disso! – Lucas continuou com seu risinho atrevido - Você não me disse o que vai fazer em relação ao pai.

- Não há nada que possa fazer, pelo menos não agora. A não ser ficar de olho. Agora são dois enrustidos que tenho que tomar conta pra não fazerem besteira.

E olhou para Lucas, esperando por uma resposta ou réplica. Que não veio.

- Não vai dizer nada? – inquiriu.

- Não há nada pra dizer. Exceto que você tenta demais me salvar, através dos outros.

- Eu não tento te salvar! – Guilherme disse – Infelizmente, não dá mais. Mas posso fazer alguma coisa pelos outros.

- Claro que pode. Mas você exagera, Gui. E, se sou fruto do seu subconsciente, você também sabe disso.

Guilherme percebeu o que o irmão estava tentando fazer:

- Eu vou continuar, não importa o que você pense.

- Tecnicamente, o que você pensa.

Dois - Contra a Parede, parte II

Alguns dias antes...

Eduardo encarava os dois barbeadores sobre o tampo da mesa com pânico estampado nos olhos claros.

- E então, pai? Quem é ele?

- Onde você achou isso? – ele gaguejou.

- No armário, onde você provavelmente os deixou. Junto com sua caixa de camisinhas usada pela metade.

Eduardo ficou sem voz. Numa reação inconsciente, ele recolheu as mãos junto ao colo, girando a aliança dourada na mão esquerda.

- Era isso que você queria me contar não era, e ficou com medo.

- Não é o que você está pensando, Guilherme!

- E o que é, pai? Por que parece que você está tendo um caso com um homem.

Em pouquíssimo tempo, a pele de Eduardo ficou rubra e gotículas de suor brotavam dos poros, seus olhos arregalados procuravam alguma explicação.

- Preste atenção no que você está falando, Guilherme! – Eduardo disse, ofendido – Perdeu o respeito pelo seu pai?!

- Não, mas posso estar prestes a perder... Depende de como você vai se explicar.

- È um amigo do trabalho que brigou com a noiva e está dormindo no sofá por alguns dias.

Guilherme fixou bem seu olhar no pai.

- Até aí, eu acredito. Só não acredito na cara de horror que você fez quando viu os barbeadores, porque, se fosse só um “amigo do trabalho”, você ficaria surpreso, não aterrorizado a ponto de paralisar. Aliás, numa explicação ainda mais simples, teria me dito durante nossa conversa informal que estava dividindo o apartamento com um amigo. Vê, pai? São tantos furos que não vejo como o senhor vai me convencer do contrário.

Eduardo continuou calado, processando tudo o que o filho dissera. Seu rosto era uma máscara de remorso, culpa, até mesmo auto-crítica Guilherme foi capaz de perceber no semblante do pai.

- Qualquer outra pessoa teria pensado que estava dividindo apartamento com um amigo, especialmente, tendo dificuldade em bancar duas casas! – Eduardo disse, com os dentes cerrados de raiva - Por que você teve essa idéia besta de que eu estou tendo um caso com um homem?!

- Por que você desistiu de me contar que estava tendo um relacionamento. Não seria tão difícil admitir que estava tendo um caso com uma mulher, dadas as circunstâncias. Você só recuaria se fosse algo mais complicado do que isso. Aí, os barbeadores, as escovas “masculinas” no banheiro, e sua expressão de puro pânico quando eu disse “ele” me deram a certeza que precisava.

- Você só estava especulando – Eduardo concluiu.

- A maior parte, sim – Guilherme disse, por fim.

Eduardo levantou o rosto para Guilherme, com vergonha do filho.

- Você me chamou – Guilherme disse – Você fala.

Vendo que não havia mais jeito de negar, Eduardo suspirou, resignado.

- Faz uns quatro ou cinco meses. Ele realmente estava tendo problemas com a noiva e decidiu sair de casa. Aqui não tem muito espaço, mas pelo menos eu teria alguma companhia, além de aliviar os custos por um tempo. E eu juro que era só isso, no começo!

Guilherme ficou calado, esperando o pai continuar sua história.

- Então um dia, chegamos do trabalho, os dois extremamente cansados, mas não por causa do dia-a-dia na empresa. Estávamos estressados, cansados de ficar à margem de nossas próprias vidas. Eu decidi que deveríamos parar de sentir pena de nós mesmos e tentar nos divertir um pouco. Fomos ao hipermercado, compramos umas latas de cerveja, algumas peças de carne e uma churrasqueira elétrica. O dinheiro estava apertado pra nós dois, mas não nos importamos. Precisávamos distrair a cabeça urgentemente. Bebemos tudo, assamos toda carne, e ainda não era suficiente. Me lembrei que tinha uma garrafa de whisky guardada, e servi algumas doses. Quando percebemos, estávamos falando das nossas vidas sexuais, da nossa juventude. A verdade é que ficamos bêbados, estávamos carentes.

- O resto é história... – Guilherme interrompeu, achando desnecessário entrar em mais detalhes.

- Exato. “O resto é história”... Naquela manhã, nem eu nem ele conseguíamos olhar um pro outro, nem fingir que tínhamos esquecido, que tinha sido o álcool. Mas ele não tinha pra onde ir, e eu muito menos. Nós tentamos conversar, racionalizar o que tinha acontecido e quando percebemos já estávamos nos...

- História – o filho repetiu, evitando os detalhes.

Eduardo olhava para o filho, chorando, sentindo-se esmagado pela vergonha, pelo medo. Não esperava que as coisas viessem à tona daquela maneira.

- E continuamos a nos relacionar, cada vez com mais intensidade, sem álcool, sem tanta carência. Depois que decidimos aceitar o que vinha acontecendo, criamos outra barreira, procurando deixar tudo apenas como carnal, como sexo. Quando percebi, estava indo a academia com ele, perdendo peso, me sentindo bem outra vez, depois de meses rastejando como lixo pelos cantos. E ele também mudou pra melhor. Mas sempre nos enganando que era só sexo. Até alguns dias, quando a noiva dele decidiu reatar os planos de casamento.

- Quando viram que o que sentiam um pelo outro era mais do que só cama – Guilherme constatou.

Eduardo apenas confirmou com a cabeça.

- Vocês decidiram resolver a vida. Ele, conversar com a noiva e você com sua família, que no momento se resume a mim – Guilherme teorizou.

- Ele não quer desmanchar o noivado e nem eu quero me separar da sua mãe!

Guilherme achou curioso:

- E também não querem terminar o caso de vocês, ou não teríamos essa conversa.

- Decidimos ficar juntos por quanto tempo for possível. Ele vai segurar o máximo que puder os preparativos do casamento e morar aqui comigo, e eu só preciso conversar com você.

- Você já me disse o que está acontecendo. O que mais há pra conversar?!

Eduardo quase engasgou, dando a impressão que sua garganta tinha se fechado ainda mais, por causa do choro e do nervosismo.

-Eu imagino o quanto deve ser difícil ouvir seu pai dizer que tem um caso com um homem. Eu realmente gosto dele, mas não posso fazer nada agora sem você... permita.

- “Permitir”? Sua vida sexual é só sua! Não tenho nada a ver com ela!

- Não é mais só minha vida sexual. É minha vida pessoal! Você é parte dela, Guilherme!

- Só quero saber o que você vai fazer em relação à mamãe – Guilherme disse sério.

Eduardo hesitou:

- Eu ainda amo sua mãe, filho. E tão logo ela se recupere, vou voltar pra casa.

Guilherme pensou no que o pai falou, processou demoradamente, tentando digerir certas incoerências:

- Você volta pra sua mulher, ele se casa com a noiva e... depois o quê?!

- Vivemos a vida. Seguimos a diante.

O garoto deu um risinho de desprezo:

- Você mesmo falou que é mais do que sexo e espera que vai ficar tudo bem deixando esse cara pra trás?

- Eu não podia esperar que sua maturidade entendesse isso, Guilherme. Tanto eu quanto ele temos outras prioridades na vida. Você e sua mãe são as minhas.

E pela primeira vez naquela noite, Eduardo viu uma chama de raiva genuína brilhar nos olhos do filho. E talvez só seu instinto primitivo tivesse reconhecido aquela expressão, porque, até aquele ponto de sua vida, ele nunca tinha visto Guilherme sustentar aquele olhar. Guilherme estalou o pescoço e engoliu em seco, com muita dificuldade. Até que seu controle – ou parte dele – voltou. Esfregou os lábios e o queixo, prendendo a respiração e soltando logo em seguida.

- Sabe? Eu não ligo se você é gay, bissexual ou só está curtindo seu momento de solteiro. Sério! Não dou a mínima! E poderia até acreditar, sinceramente, que você seguiria sua vida se vocês só estivessem cruzando espadas. Mas não posso; não depois de toda essa conversa. Como você pode esperar que fique tudo bem, pai?!

Eduardo abaixou a cabeça, sem conseguir dizer nada.

- Você não espera, não é mesmo?... – Guilherme finalmente notou.

- O que eu tenho com ele é muito bom, tem me feito bem, mas não é pra ser, Guilherme. Não é pra dar certo. Nós temos nossas obrigações com nossas famílias, nossas vidas.

Guilherme trincou os dentes, preparando-se para gritar a plenos pulmões, revoltado, irado. Mas se segurou. Com muito custo, recuperou o fôlego e a paciência.

- Não me importa o que aconteça, pai, se vocês vão ficar juntos ou se separarem. A única coisa que posso pensar no momento é: não deixe a mamãe descobrir, saber, desconfiar que você está tendo um caso com um homem! Por nada neste mundo!

Eduardo se sobressaltou, com certa indignação:

- Não tenho intenção de fazer isso, Guilherme! Sei que sua mãe pioraria sem chances de cura se souber de algo! Não vou nunca deixar isso acontecer!

Um - Ironia, parte I

Era um domingo bem ensolarado. Coisa para se aproveitar numa cidade em que o tempo era instável em seu sentido mais literal. Guilherme vestiu uma roupa bem despojada, uma bermuda floral e camisa de algodão clara pra aliviar o calor e, por causa de sua pele excessivamente branca, não podia sair sem um protetor solar. Ele aproveitou que tinha aquele dia de folga para colocar a cabeça no lugar e só tinha um lugar em que conseguia fazê-lo: ao lado diante da lápide do irmão.

- Foi bizarro, Lucas – Guilherme disse, sentado sob a sombra de uma árvore frondosa, mal acomodado em suas raízes que pareciam tentáculos de uma lula maldosa.

- Eu sei – seu irmão (imaginário ou não) preferiu andar ao seu redor, com as mãos no bolso do sobretudo negro.

- Acho que você teria apreciado a ironia...