domingo, 4 de julho de 2010

Dois - Contra a Parede, parte II

Alguns dias antes...

Eduardo encarava os dois barbeadores sobre o tampo da mesa com pânico estampado nos olhos claros.

- E então, pai? Quem é ele?

- Onde você achou isso? – ele gaguejou.

- No armário, onde você provavelmente os deixou. Junto com sua caixa de camisinhas usada pela metade.

Eduardo ficou sem voz. Numa reação inconsciente, ele recolheu as mãos junto ao colo, girando a aliança dourada na mão esquerda.

- Era isso que você queria me contar não era, e ficou com medo.

- Não é o que você está pensando, Guilherme!

- E o que é, pai? Por que parece que você está tendo um caso com um homem.

Em pouquíssimo tempo, a pele de Eduardo ficou rubra e gotículas de suor brotavam dos poros, seus olhos arregalados procuravam alguma explicação.

- Preste atenção no que você está falando, Guilherme! – Eduardo disse, ofendido – Perdeu o respeito pelo seu pai?!

- Não, mas posso estar prestes a perder... Depende de como você vai se explicar.

- È um amigo do trabalho que brigou com a noiva e está dormindo no sofá por alguns dias.

Guilherme fixou bem seu olhar no pai.

- Até aí, eu acredito. Só não acredito na cara de horror que você fez quando viu os barbeadores, porque, se fosse só um “amigo do trabalho”, você ficaria surpreso, não aterrorizado a ponto de paralisar. Aliás, numa explicação ainda mais simples, teria me dito durante nossa conversa informal que estava dividindo o apartamento com um amigo. Vê, pai? São tantos furos que não vejo como o senhor vai me convencer do contrário.

Eduardo continuou calado, processando tudo o que o filho dissera. Seu rosto era uma máscara de remorso, culpa, até mesmo auto-crítica Guilherme foi capaz de perceber no semblante do pai.

- Qualquer outra pessoa teria pensado que estava dividindo apartamento com um amigo, especialmente, tendo dificuldade em bancar duas casas! – Eduardo disse, com os dentes cerrados de raiva - Por que você teve essa idéia besta de que eu estou tendo um caso com um homem?!

- Por que você desistiu de me contar que estava tendo um relacionamento. Não seria tão difícil admitir que estava tendo um caso com uma mulher, dadas as circunstâncias. Você só recuaria se fosse algo mais complicado do que isso. Aí, os barbeadores, as escovas “masculinas” no banheiro, e sua expressão de puro pânico quando eu disse “ele” me deram a certeza que precisava.

- Você só estava especulando – Eduardo concluiu.

- A maior parte, sim – Guilherme disse, por fim.

Eduardo levantou o rosto para Guilherme, com vergonha do filho.

- Você me chamou – Guilherme disse – Você fala.

Vendo que não havia mais jeito de negar, Eduardo suspirou, resignado.

- Faz uns quatro ou cinco meses. Ele realmente estava tendo problemas com a noiva e decidiu sair de casa. Aqui não tem muito espaço, mas pelo menos eu teria alguma companhia, além de aliviar os custos por um tempo. E eu juro que era só isso, no começo!

Guilherme ficou calado, esperando o pai continuar sua história.

- Então um dia, chegamos do trabalho, os dois extremamente cansados, mas não por causa do dia-a-dia na empresa. Estávamos estressados, cansados de ficar à margem de nossas próprias vidas. Eu decidi que deveríamos parar de sentir pena de nós mesmos e tentar nos divertir um pouco. Fomos ao hipermercado, compramos umas latas de cerveja, algumas peças de carne e uma churrasqueira elétrica. O dinheiro estava apertado pra nós dois, mas não nos importamos. Precisávamos distrair a cabeça urgentemente. Bebemos tudo, assamos toda carne, e ainda não era suficiente. Me lembrei que tinha uma garrafa de whisky guardada, e servi algumas doses. Quando percebemos, estávamos falando das nossas vidas sexuais, da nossa juventude. A verdade é que ficamos bêbados, estávamos carentes.

- O resto é história... – Guilherme interrompeu, achando desnecessário entrar em mais detalhes.

- Exato. “O resto é história”... Naquela manhã, nem eu nem ele conseguíamos olhar um pro outro, nem fingir que tínhamos esquecido, que tinha sido o álcool. Mas ele não tinha pra onde ir, e eu muito menos. Nós tentamos conversar, racionalizar o que tinha acontecido e quando percebemos já estávamos nos...

- História – o filho repetiu, evitando os detalhes.

Eduardo olhava para o filho, chorando, sentindo-se esmagado pela vergonha, pelo medo. Não esperava que as coisas viessem à tona daquela maneira.

- E continuamos a nos relacionar, cada vez com mais intensidade, sem álcool, sem tanta carência. Depois que decidimos aceitar o que vinha acontecendo, criamos outra barreira, procurando deixar tudo apenas como carnal, como sexo. Quando percebi, estava indo a academia com ele, perdendo peso, me sentindo bem outra vez, depois de meses rastejando como lixo pelos cantos. E ele também mudou pra melhor. Mas sempre nos enganando que era só sexo. Até alguns dias, quando a noiva dele decidiu reatar os planos de casamento.

- Quando viram que o que sentiam um pelo outro era mais do que só cama – Guilherme constatou.

Eduardo apenas confirmou com a cabeça.

- Vocês decidiram resolver a vida. Ele, conversar com a noiva e você com sua família, que no momento se resume a mim – Guilherme teorizou.

- Ele não quer desmanchar o noivado e nem eu quero me separar da sua mãe!

Guilherme achou curioso:

- E também não querem terminar o caso de vocês, ou não teríamos essa conversa.

- Decidimos ficar juntos por quanto tempo for possível. Ele vai segurar o máximo que puder os preparativos do casamento e morar aqui comigo, e eu só preciso conversar com você.

- Você já me disse o que está acontecendo. O que mais há pra conversar?!

Eduardo quase engasgou, dando a impressão que sua garganta tinha se fechado ainda mais, por causa do choro e do nervosismo.

-Eu imagino o quanto deve ser difícil ouvir seu pai dizer que tem um caso com um homem. Eu realmente gosto dele, mas não posso fazer nada agora sem você... permita.

- “Permitir”? Sua vida sexual é só sua! Não tenho nada a ver com ela!

- Não é mais só minha vida sexual. É minha vida pessoal! Você é parte dela, Guilherme!

- Só quero saber o que você vai fazer em relação à mamãe – Guilherme disse sério.

Eduardo hesitou:

- Eu ainda amo sua mãe, filho. E tão logo ela se recupere, vou voltar pra casa.

Guilherme pensou no que o pai falou, processou demoradamente, tentando digerir certas incoerências:

- Você volta pra sua mulher, ele se casa com a noiva e... depois o quê?!

- Vivemos a vida. Seguimos a diante.

O garoto deu um risinho de desprezo:

- Você mesmo falou que é mais do que sexo e espera que vai ficar tudo bem deixando esse cara pra trás?

- Eu não podia esperar que sua maturidade entendesse isso, Guilherme. Tanto eu quanto ele temos outras prioridades na vida. Você e sua mãe são as minhas.

E pela primeira vez naquela noite, Eduardo viu uma chama de raiva genuína brilhar nos olhos do filho. E talvez só seu instinto primitivo tivesse reconhecido aquela expressão, porque, até aquele ponto de sua vida, ele nunca tinha visto Guilherme sustentar aquele olhar. Guilherme estalou o pescoço e engoliu em seco, com muita dificuldade. Até que seu controle – ou parte dele – voltou. Esfregou os lábios e o queixo, prendendo a respiração e soltando logo em seguida.

- Sabe? Eu não ligo se você é gay, bissexual ou só está curtindo seu momento de solteiro. Sério! Não dou a mínima! E poderia até acreditar, sinceramente, que você seguiria sua vida se vocês só estivessem cruzando espadas. Mas não posso; não depois de toda essa conversa. Como você pode esperar que fique tudo bem, pai?!

Eduardo abaixou a cabeça, sem conseguir dizer nada.

- Você não espera, não é mesmo?... – Guilherme finalmente notou.

- O que eu tenho com ele é muito bom, tem me feito bem, mas não é pra ser, Guilherme. Não é pra dar certo. Nós temos nossas obrigações com nossas famílias, nossas vidas.

Guilherme trincou os dentes, preparando-se para gritar a plenos pulmões, revoltado, irado. Mas se segurou. Com muito custo, recuperou o fôlego e a paciência.

- Não me importa o que aconteça, pai, se vocês vão ficar juntos ou se separarem. A única coisa que posso pensar no momento é: não deixe a mamãe descobrir, saber, desconfiar que você está tendo um caso com um homem! Por nada neste mundo!

Eduardo se sobressaltou, com certa indignação:

- Não tenho intenção de fazer isso, Guilherme! Sei que sua mãe pioraria sem chances de cura se souber de algo! Não vou nunca deixar isso acontecer!

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