quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Vinte - Primeiro Encontro

Como combinado, Rafael e Selton se encontraram e foram a uma lanchonete num bairro próximo, dava pra ir andando em menos de dez minutos. No caminho, tentavam parecer apenas amigos, mas sempre trocando olhares cúmplices e intensos. Rafael finalmente estava tendo o que queria, alguém pra ficar perto dele, alguém que o faria companhia, além de outras coisas...

Sentaram à mesa, com medo que os outros clientes da lanchonete reparassem que eram mais do que amigos. Era, na verdade, engraçado que ficassem tão temerosos. Afinal, não havia motivos para suspeitarem, havia? Por via das dúvidas, sentaram-se um em frente ao outro, mas encostados na parede.

- Quer tomar uma cerveja?

- Não. Minha mãe me mata se eu chegar em casa alcoolizado, hoje.

- Falou o filhinho da mamãe...

- Falou o rebelde sem causa.

- Pára de ser tão certinho, Rafa. Só uma cerveja não vai matar ninguém, não! – Selton argumentou, entusiasmado com a idéia de convencer Rafael.

- Já estou vendo que você vai ser uma má influência.

- “Luke, come to the dark side” – Selton disse, forçando a voz.

Rafael riu.

- Nunca vi ninguém que fizesse mais citações pop do que você.

- Eu sou o máximo.

- E modesto também.

- Não vai querer mesmo, não? Nem uma latinha?

- Melhor, não.

- Beleza. Mas você sabe que sua mãe não ligaria, não é.

Um garçon trouxe o cardápio e os dois pediram um X-Bacon cada um e uma Coca de um litro e meio. Rafael ainda protestou que seria muito, mas Selton disse que se sobrasse refrigerante poderiam levar pra casa. O garçon foi fazer o pedido na cozinha e logo trouxe o refrigerante e dois copos. Servidos, Selton os levantou levemente, propondo um brinde:

- Ao garoto mais lindo que eu conheço – ele disse, baixinho.

- Ao garoto mais lindo que eu conheço – Rafael disse, batendo os copos.

Os dois tomaram um gole do refrigerante e ficaram algum tempo sem assunto, até que Rafael disse:

- Eu não queria falar nisso, agora, mas tem uma coisa me incomodando desde o almoço.

- Sobre o quê? – Selton perguntou.

- Sobre você e a Débora.

- O que tem? – Selton se fez de desentendido.

- Não tem mais nada entre vocês mesmo? – “Por favor, diz que não!”

- Rafa, já disse. Meu lance com a Débora foi só uma ficada. Desde que o conheci que sou afim de você e só fiquei com a Débora porque achei que você não queria nada comigo – Selton explicou – Eu e você estamos, agora. E é com você que eu quero ficar.

- E ela pensa assim também? – Rafael disse, temeroso – Por que eu nunca a vi tão empenhada e ficar com alguém quanto ela se empenhou pra ficar com você.

- Isso não quer dizer que ela esteja apaixonada por mim, Rafa. E se estiver, vou explicar pra ela que não estou afim de nada sério com ela. Aliás, agora, nem por diversão mais.

- Tem certeza?

- Tenho, meu lindo. Pode ficar tranqüilo porque a única boca que eu vou beijar é a sua.

- Sério?

- Sério.

- Sei lá... eu tenho medo de...

- Não tenha.

- Ok – Rafael se convenceu, finalmente – Devo ser a pessoa mais paranóica que você conhece.

“Você ainda não viu minha mãe”, Selton pensou.

- Só um pouquinho.

O lanche demorou mais uns dez minutos para ficar pronto. Comeram enquanto conversavam, tentando disfarçar. Depois foram embora e pararam na praça do bairro para conversarem e beberem o restante da Coca que sobrou – como Rafael previra. Lá pelas tantas, Rafael lembrou que teriam que acordar cedo pra ir a aula e, sob protestos, se separaram para dormir cada um em sua casa.

Dezenove - Esperto

Marina não acordou, o que atiçou o desespero de Guilherme. Sua mãe já estava desacordada há mais de vinte e quatro horas e não esboçava qualquer menção de recobrar a consciência. Já tinha terminado de ler seu livro e não tinha mais nada pra passar o tempo e tapear a ansiedade.

E, além de sua mãe em estado comatoso, o pai tinha voltado ao quarto tenso depois de atender o telefonema do amante. Guilherme não precisava ser um gênio pra saber que eu estava a par da situação e não ligou pra ter notícias. Pessoas são previsíveis. Seu pai, por outro lado, não gostara, por motivos talvez não tão óbvios.

- Qual é o nome dele? – Guilherme perguntou, pra quebrar o silêncio.

- Agora não, Guilherme. Sua mãe pode acordar a qualquer.

- Ela não acordou até, agora. Acho que podemos abandonar qualquer esperança disso acontecer nas próximas horas.

- Carlos – Eduardo respondeu, à contra-gosto – Vamos terminar esse assunto aqui!

- Foi ele que ligou, não foi?

- Por que você quer falar disso logo agora?

- Passar o tempo?...

- Essa não é uma boa razão, Guilherme.

- Você acha mesmo que quando ela acordar, ela vai estar lúcida o suficiente pra escutar o que estamos falando e ainda por cima, guardar na memória o que ouviu?!

- Por que você está insistindo tanto pra conversar sobre isso?

- Estou preocupado com você – Guilherme disse, esperando que fosse uma “boa razão”.

- Não precisa. Não deve! – Eduardo disse, tentando encerrar o assunto definitivamente.

Guilherme usou seu cérebro rápido para pensar em algum modo de fazer o pai falar sobre o que estava sentindo em relação a tudo aquilo: mulher deprimida, filho sobrecarregado, relacionamento homossexual extra-conjugal. Sabia que se não fizesse o pai falar, ele explodiria, cedo ou tarde. Teria que recorrer ao que fazia de melhor: manipular.

- Desculpe. Estou nervoso com tudo o que está acontecendo.

- Nós dois estamos, filho – Eduardo disse, recuperando a compostura.

- Já está ficando tarde. Por que não vai em casa tomar um banho, trocar de roupa e fazer uma refeição descente?

- Não é necessário. Estou bem.

- Você está com essa mesma roupa desde ontem à noite – insistiu – E, honestamente, o cheiro não esta ficando muito agradável.

- Eu não vou deixar sua mãe sozinha, Guilherme.

- Ela não vai estar sozinha. Vou estar bem aqui até você voltar.

- Quase me esqueci que amanhã você tem aula...

- Então.

- Pode ir. Vá você pra casa e descanse. Se alguma coisa mudar aviso.

Guilherme teria que ser um pouco mais incisivo:

- Ainda está cedo. Dá tempo de você voltar no apartamento, trocar essa roupa imunda...

- Eu não vou embora, Guilherme. Pode ir se quiser. Aliás, você tem que ir!

“Ok. Acabaram-se as indiretas, mas cheguei onde queria”

- Você não quer voltar ao apartamento, quer?

- Do que você está falando? – Eduardo perguntou, ciente de que já tinha sido analisado pela perspicácia ímpar do filho.

- Desde que o Carlos ligou, você não saiu mais do quarto. Pra nada!

Eduardo foi evasivo:

- Bobagem.

- Ou é culpa ou é medo... – Guilherme cogitou. “Ou os dois...”

- “Culpa”? “Medo”? De quê? O que você quer arrancar de mim, Guilherme?! Tudo o que aconteceu já não é estressante demais pra você ficar me irritando com perguntas que não lhe interessam?!

- Ou você não quer sair daqui por culpa por ter deixado a mãe chegar a esse ponto, ou você está com medo do que pode acontecer se voltar ao seu apartamento!

Eduardo quase gritou; quase estourou. Conseguiu se controlar no último segundo.

- Já estamos com coisa demais pra lidar neste momento, Guilherme! Pare de ser criança e entenda isso, pelo amor Deus.

- Se sentir culpado não vai fazer as coisas mudarem, pai! E ter medo de enfrentar o que pode acontecer só vai piorá-las!

- Você não sabe do que está falando, Guilherme.

- Você não sabe o que está fazendo, pai. Ignorar o indesejável foi justamente o que nos trouxe até aqui.

Eduardo se calou por alguns instantes, digerindo o que o filho disse.

- Não sei como você consegui ficar mais esperto do que eu.

- Ainda dá tempo de ser mais esperto.

Eduardo suspirou.

- Certo. Vou em casa o mais rápido que puder e volto pra te liberar.

- Vai lá, pai.

Dezoito - Perfeito

Selton não se lembrava de ter sentido nada nem remotamente parecido com o que sentia naquele momento. Era como tomar uma bebida quente e muito doce, com um suave toque de canela. Todas as outras pessoas com quem cruzara, mexeram com ele de alguma forma, nem que fosse pelo puro e destilado tesão. Mas Rafael tinha algo de diferente, que Selton não podia explicar. Só sabia que seu colega/vizinho e agora namorado, não era como os outros. Era alguma coisa no olhar, talvez?... O ar de garoto triste?... Ou seria apenas a incrível sucessão de coincidências que cercou o começo da história dos dois?... Não sabia e não importava! Só importava a felicidade que sentia ao pensar no garoto loiro do outro lado da rua.

“Garoto, não!”, Selton pensou, lembrando-se da determinação que Rafael tinha. Já tinha saído com caras alguns anos mais velhos que não tinham nem metade da certeza que Rafael sustentava no olhar. Claro que ele se sentia assustado, afinal, se relacionar com um homem era novidade pra ele, mas tinha encarado toda a situação muito bem. “Meu garoto. Meu lindo”. Era orgulho que estava sentindo?

Teria que sentir outra hora, porque tinha que se arrumar para encontrar o namorado – não se cansava de repetir em sua cabeça. Tomou um banho rápido, lembrando-se da madrugada. A simples imagem de Rafael todo molhado, nu, na sua frente... Por pouco não tocou uma punheta rápida de baixo do chuveiro. Não! Aqueles tempos ficaram para trás. Tinha que poupar sua energia para o namorado, porque, mesmo iniciante, ele não pegava leve. Aliás, cama era outro quesito que Rafael se mostrou muito melhor do que Selton podia imaginar. Já tinha transado com outro garoto virgem uma vez e praticamente teve que dar uma aula à ele. Rafael, não. Rafael soube exatamente o que, quando e como fazer, sem precisar de instrução alguma.

Saiu do banho, enrolado na toalha, porque, ao contrário de Rafael não tinha a comodidade de uma suíte. Ainda havia gotas espalhadas pelo seu corpo e seu cabelo estava úmido. Voltou ao seu quarto rapidamente e fechou a porta pra se vestir com privacidade. Abriu as portas do armário, para escolher a roupa que vestiria, e percebeu que estava ansioso para reencontrar Rafael. Não se viam a pouquíssimas horas e já queria estar com ele outra vez. Não precisaria nem beijá-lo ou tocá-lo, só queria mesmo vê-lo.

Pegou uma camisa verde água com estampas tribais e uma bermuda branca de tactel. Tirou uma cueca boxer preta da gaveta, imaginando qual seria a reação de Rafael ao vê-la em seu corpo, marcando seu saco e seu pau. Modéstia a parte, ficava muito gostoso com aquela cueca. Vestiu a camisa e a bermuda, calçou uma meia e ajeitou o cabelo com um pouco de gel. Olhou-se no espelho e gostou do resultado. Pegou o tênis e quando estava amarrando o cadarço, seu irmão entrou no quarto.

- Brow, meu cd do Natiruts veio parar nas suas coisas?

Selton olhou rapidamente para Júnior e notou que ele estava um pouco estressado.

- Cara, não o vi por aqui.

- Brincadeira!... Só falta a Dona Mônica ter jogado o cd fora! – ele disse, revoltado. Não seria a primeira vez que Mônica jogava as coisas do filho mais velho sem mais nem menos (ou pelo menos, Junior enxergava a questão daquele jeito).

- Vai com calma, Brow. Estressa antes da hora, não. Procura direito nas suas coisas, que devem estar lá – Selton advertiu, terminando de dar o laço no cadarço.

- Já procurei, cara.

- Sério? Porque naquela bagunça que está seu quarto, nem uma equipe de resgate da marinha conseguiria achar o que quer que fosse ali dentro.

- Qual é?! Você também vai começar a encher o saco, agora?! Desde que a gente mudou pra cá, você só tem me tirado.

Selton, de tênis completamente calçados, voltou ao espelho do guarda-roupas, pra dar uma última olhada no visual e conferir se faltava alguma coisa. Cogitou usar uma corrente de prata que só usava em ocasiões muito especiais, mas um cordão de sementes fosse mais casual. Catou as duas um uma das prateleiras do armário e as mostrou para o irmão.

- Qual delas? Prata ou semente?

- Depende. Já pegou ou vai pegar?

Selton pensou.

- Pretendo continuar pegando.

Junior estranhou a resposta do irmão.

- Sério? Você? Ela deve ser muito gostosa.

- Ah! Não zoa! Nunca fui esse galinha que você acha que sou! - Selton indignou-se.

- Não. Claro que não. Você só dizia que não tinha sido feito pra namorar sério.

- Não tinha achado a pessoa certa, ainda.

Júnior duvidou:

- E a achou aqui?

“Do outro lado da rua, pra ser mais exato”

- Aham. Agora, diz: a de prata ou a de sementes?

- A de prata – disse enfim – Vai sair de novo?

- Vou, mas devo voltar daqui a pouco.

- Aproveite por mim, porque estou vivendo praticamente em cárcere privado. Você acredita que o pão acabou e a Dona Mônica não me deixou ir na padaria?!

- Eu já disse que ela está exagerando, Hugão já falou também, mas você sabe que ela é biologicamente incapaz de ouvir outra pessoa que não seja ela mesma.

- Éh! Eles brigaram, hoje outra vez – Júnior disse.

- Fiquei sabendo – Selton respondeu, cansado daquela dinâmica familiar – Dona Mônica não facilita.

- Não mesmo. Você acha que um dia ela vai confiar em mim?

Selton foi pego de surpresa. Não que já não tivessem tido aquela conversa. A felicidade de ter ficado com Rafael tinha ofuscado aquele lado de sua história, a família complicada, os conflitos que tinha que apartar quase todos os dias.

- É pra isso que nos mudamos pra cá. Pra que você tivesse outra chance.

- Mas é a última, não é?

“Claro que não”, foram essas as palavras que quase saíram da boca de Selton, mas sabia que não podia dizê-las, se quisesse que o irmão superasse seus problemas.

- Acredito que sim... – mentiu – Olha, a Dona Mônica te ama, só não entende como você foi se meter com tanto problema.

- Diferente de você, que nunca se meteu em problema nenhum – Júnior disse, com uma nota de ressentimento, ou talvez inveja.

- Isso não é verdade.

- Você sempre foi o filho perfeito.

- Não começa, Brow! Você sabe que isso não é verdade! Só dê um tempo para as coisas se ajeitarem. Daqui a pouco, a Dona Mônica consegue um lugar pra trabalhar e ela vai parar de pegar tanto no seu pé.

- Duvido, Brow.

- Vai sim, cara. É só ter um pouco de paciência.

Dezessete - Aguardando

Ana ficou com Rafael até a noite, e conversaram sobre todos os detalhes do que aconteceu entre ele e Selton. A garota tinha ficado tão feliz quanto amigo. Não era apenas empolgação ou pelos fatos. Estava feliz por ele ter despido aquele preconceito contra ele mesmo e, portanto, estava livre de se culpar e se torturar. Poderia agora, curtir a vida e um cara legal.

- Ah! Eu me derreti todo quando acordamos e ele disse “bom dia, meu namorado”... – Rafael comentou, realmente, todo “derretido” – Não consigo acreditar até agora no que esta acontecendo!

Ana riu.

- Será que você alucinou tudo?

- Nem fala uma coisa dessas! – ele riu junto – Sabe? Estou aliviado de poder conversar sobre isso com você.

- Que você é gay? Achei que tínhamos passado dessa fase, ontem.

- Não! Quero dizer, disso também, mas de namoro. Antes era uma conversa de mão única. Só você falava.

- Eh! Agora, só você vai falar por um bom tempo. Não estou querendo nada de namoros ou ficadas por enquanto.

- Você só não fica com ninguém por que não quer.

- Ah! Rafa, não estou afim de confusão, entende? E namoro sempre dá.

- Nem me fale... Estou com medo do meu namoro dar problema.

- É só vocês serem discretos, Rafa.

- Foi o que a gente combinou. Mas nem tudo sai como planejado.

- Não começa, Rafa - Ana advertiu – Não entre em paranóia.

- Ok! Parei.

Não demorou muito e o celular de Rafael tocou.

- Oi, meu lindo – Selton disse - E, então? Está pronto?

Simplesmente, ouvir a voz do namorado, foi o bastante para fazê-lo sorrir.

- Não! A Ana veio pra cá e a gente ficou conversando. Mas em dez minutos eu tomo banho e a gente sai. Quer vir pra cá e me esperar?

- Você já contou pra Ana sobre a gente?

- Contei. Mas não se preocupa não, ela não vai contar pra ninguém.

Selton aparentemente não gostou muito daquilo, parecia desconfiado.

- Algum problema?

- Não, nenhum. Ela é sua amiga. Minha amiga. Não tem problema nenhum!

- Não se preocupe. Ela não vai contar nada pra ninguém que não deva.

- Ok. Mas vou esperar aqui, quando você terminar de se arrumar, me liga e a gente se encontra no portão.

- Está bem. Daqui a pouco eu te ligo.

- Era o “namô”? - perguntou Ana, quando ele desligou o telefone.

- Era ele sim. Vou tomar um banho e me arrumar. Você me espera?

- Claro. Vai lá.

Dezesseis - O Que Deve Ser Feito

O médico apareceu no quarto para checar Mônica, chamando a atenção de Guilherme e Eduardo.

- Boa tarde – ele disse, simpaticamente.

- Boa tarde, doutor – Eduardo disse, ao se levantar do sofá, observando o médico analisar o monitor e verificar a resposta das pupilas. Olhou a dosagem do soro e pareceu satisfeito. Anotou alguma coisa no prontuário dela e virou-se para Eduardo.

- Tem certeza que não querem restringir os movimentos dela?

- Não, doutor. Não será necessário – Eduardo disse, firmemente – Sei que o que aconteceu não foi um acidente, mas tenho fé que ela não vá tentar mais nada.

O médico assentiu.

- Como queira. O estado dela está bem estável, não deve haver nenhuma seqüela.

- Ela ainda vai demorar pra acordar.

- Acredito que não. Sua esposa deve recobrar a consciência em breve

- Obrigado, doutor.

- Com licença – o médico disse, antes de se retirar.

Eduardo sentou-se ao lado do filho e ficou assistindo televisão, enquanto Guilherme continuava, silenciosamente, sua leitura.

- Como você acha que vai ser, quando sua mãe acordar? – Eduardo perguntou, a voz carregada de receio.

Guilherme não tirou os olhos das páginas.

- Estou preferindo não pensar muito nisso.

- Éh! Você provavelmente tem razão - disse, incerto – Só não quero piorar as coisas. Você sabe que sua mãe me culpa pela morte do seu irmão e me ver aqui quando acordar, pode fazê-la perder o controle.

Guilherme não soube o que responder ao pai, porque ele mesmo achava que era possível ela ter outro surto ao ver o marido.

- Espero que ela acorde melhor – Guilherme disse, enfim – Ela não tem dormido bem desde que Lucas morreu. Talvez esse sono a ajude a se recuperar.

- Você acha?

- Espero que sim.

- É ingenuidade nossa achar que os problemas da sua mãe vão se resolver com uma bela noite de sono – Eduardo disse, com um riso amargo no rosto.

Guilherme concordou, achando graça de sua própria idéia.

- Me arrependendo tanto de ter deixado vocês – Eduardo disse – Se tivesse ficado do lado de vocês ao invés de ter fugido.

- Não é hora de pensar nisso, pai. Não vai mudar o que aconteceu. Não vai mudar nada. Nem o que a mãe fez ou Lucas.

Eduardo olhou para o filho, com admiração.

- Sabe, é incrível como você sempre acha um jeito de estar certo.

- Não é fácil. Às vezes é bom estar errado – Guilherme disse, com um tom sombrio.

Eduardo percebeu a tristeza do filho – seria difícil não notar. Ele pôs a mão no ombro do filho e apertou, com peculiar solidariedade paterna.

- Vai dar tudo certo, daqui pra frente. Vamos parar de deixar as coisas confortáveis e fazer o que deve ser feito.

- Parece um bom plano pra mim.

Eduardo puxou o filho e deu um abraço apertado nele, como há muito tempo não dava. Mesmo a sensação de que suas costelas pudesse se partir a qualquer momento, não impediu Guilherme de apreciar o abraço, que estava imbuído da sensação tão necessária de mudança. Alguns males vêm para o bem.

Quando se soltaram do abraço, Eduardo estava com os olhos marejados. Às vezes, Guilherme se perguntava à quem tinha puxado, porque sua família toda era meio sentimental enquanto ele parecia mais frio.

- Não é pra tanto, pai.

- Desculpa, Guilherme. É que o estresse da situação já está começando a mexer com a minha cabeça.

Guilherme deu um sorriso meio torto.

- Sei...

No meio daquela cena familiar, alguma coisa começou a fazer barulho. Guilherme achou que fossem os monitores ligados a mãe e se alarmou, mas era o celular do pai.

A alegria serena que Eduardo tinha no rosto foi embora quando ele olhou para o display do aparelho; ficou sério demais. Mirou o filho, titubeante. Guilherme soube imediatamente do que se tratava. Era o amante do pai, ao telefone.

- Tenho que atender essa ligação – Eduardo falou.

Guilherme apenas balançou a cabeça, assentindo.

- Vou atender lá fora. Desculpe.

Eduardo saiu com o celular na mão, enquanto, Guilherme o acompanhava com os olhos, pensando: “‘O que deve ser feito’. Éh, pai! O que deve ser feito?”