terça-feira, 6 de julho de 2010

Dez - Animado

Assim que chegaram ao colégio, Selton foi direto falar com Bernardo e Rafael acabou sendo arrastado com ele. Se cumprimentaram com rápidos “bons dias” e Selton já estava tirando a carteira do bolso.

- Aqui cara, a minha parte da grana – e entregou duas notas de dez reais para Bernardo.

- Uau! Você está mesmo animado!

- Você não faz idéia! – Rafael comentou.

- E você, Rafa? Vai curtir com a galera? – Bernardo perguntou.

Selton não deixou o amigo responder:

- Ah! Ele vai!

- Vou – Rafael pegou a própria carteira e tirou uma nota de vinte – Aqui.

- Agora você vai ter que ir de qualquer maneira.

- Por quê? Só porque já paguei?

- Claro! Ou então vai ficar no prejuízo.

Rafael olhou sério para Selton e disse:

- E se eu não me importar de ficar no prejuízo?...

- Você às vezes pode ser bem irritante, Rafa.

A aula começou e os dois conversaram muito aquele dia. Selton estava mesmo muito animado por Rafael ter decidido ir e mesmo que não curtissem as mesmas coisas (leia-se: futebol) a expectativa dos dois para o fim de semana era crescente. Sem contar que ele não perderia, por nada no mundo, a visão do corpo moreno de Selton apenas de sunga ou calção ao sol ou molhado à piscina.

Na hora do intervalo, Rafael foi sozinho comprar um refrigerante, pra compensar Selton pelo comprado no dia anterior, quando tomou um susto.

- O Selton estava bem animadinho com a idéia do churrasco, não é mesmo, Rafa?

Rafael deu um pulo pra trás quando Guilherme falou ao seu ouvido, como se tivesse vindo do nada, na cantina, enquanto ele pedia seu refrigerante.

- Ah! É você...

- Quem mais poderia ser?... Você no churrasco do pessoal, Rafa?

Rafael olhou irritado para o outro garoto loiro.

- Vou - respondeu, secamente.

- Imaginei que fosse. Não ia perder a chance de se divertir com Selton, não é verdade?

- Selton é meu amigo! Isso não tem nada a ver!

- Eu nunca disse ao contrário... - e Guilherme foi embora, com um sorriso malicioso no rosto.

Rafael assistiu ele sair, sentindo muita raiva, coisa que raramente sentia, exceto quando se tratava de Guilherme.


Nove - Decisão Tomada

Rafael e Selton só foram se falar de novo, na manhã seguinte, quando se encontraram na rua para pegarem o ônibus. Desde que se tocou que podia dar muita bandeira perto de Selton, Rafael decidiu não ir mais de carona com a mãe e correr o risco dela perceber alguma coisa. No entanto, não podia abrir mão da companhia do amigo. Aliás, também já era hora de Rafael ir para o colégio sozinho.

Logo que se viram na calçada, Selton disparou:

- Dormiu bem? – brincou.

- Dormi, sim – Rafael o cumprimentou.

- Podemos conversar como gente, hoje?

- OK. Chega.

- Só estou te enchendo o saco.

“Meu saco está bem cheio, hoje. Acredite.”

- Como você consegue acordar de tão bom humor?

- Ah! Você não quer saber meu segredo...

Rafael parou e pensou nas possibilidades.

- Você está certo, eu não quero saber.

Selton riu.

- E aí? Já decidiu se vai ao “churras” de boa vontade ou vou ter que te amarrar?

- Não vai, não. Pensei no que você disse e achei melhor ir e aproveitar do que ficar em casa sem nada pra fazer.

Selton vibrou como se tivesse feito um gol pelo seu time do coração:

- Aê! Sabia que você não ia resistir a um final de semana de farra!

- Peraí! Eu vou! Mas tem uma condição!

- Qual? – a objeção de Rafael não tirou sua animação.

- Não gosto de ir a essas festas porque eu vejo o pessoal ficando, beijando na boca e eu fico de lado chupando dedo!

- Qual a condição?

- Bem, você... – Rafael ficou um pouco desconcertado – parece ter jeito com as garotas e tals... Você não podia me dar uns conselhos, umas dicas?

Selton encarou Rafael, como quem espera uma continuação – que não veio.

- Você está de zoação com a minha cara!

- Não! Por quê?!

- Rafael! Você é loiro de olho claro! Você não precisa de dica nenhuma pra pegar garotas! Claro, se fosse burro ou ignorante... mas, não. Você é um cara legal, boa pinta e inteligente. De que dicas você precisa pra ficar com alguém?!

- Não sei... Por exemplo, eu não sei como transformar uma conversa qualquer num “fica comigo?”.

Selton olhou para o amigo, estranhando as perguntas que ele estava fazendo:

- E as garotas com quem você já ficou?

- Bem, a maioria a Ana que ajeitou pra mim – Rafael admitiu envergonhado.

- OK, lá vai. Vou dar a única dica que você provavelmente precisa: você precisa parar de se enfiar em uma concha toda vez que troca olhar com uma garota. Elas gostam de serem observadas por caras como você.

- Sério?! – Rafael perguntou.

- Você não é daqueles babacas que conversa com mulher olhando nos olhos e não nos peitos.

“OK, mas isso porque eu sou gay!”, pensou.

- Outra coisa: não fique com medo de conversar com uma garota. Pode ter certeza que elas não vão te morder. Algumas talvez mordam, mas só se você pedir – Selton brincou.

- Eu não sei... – Rafael disse, incerto.

- Rafa, você tem que confiar mais em quem você é, porque, mulher não gosta de homem que não tem confiança em si mesmo. E, como diria um amigo meu: “you’re awesome!”

Rafael reconheceu a frase imediatamente:

- Quem é esse seu amigo?

- Barney Stinson.

- Sério! Se você parar de ter medo de garotas, as coisas ficam mais fáceis. Vai chover gatinha em cima de você no “churras”.

- Eu realmente não gosto desse termo – Rafael comentou, entediado.

- Qual? “Churras”?

- “Gatinha”.

- Por que não?

- Não sei... parece não soar... certo...

- Prefere o quê? “Gostosa”?!

- Piorou.

- Já sei! Potranca!

- Ok, Selton! Já deu!

Oito - Considerando

E como prometido, Rafael pensou se iria ou não ao dito churrasco da turma. Não queria ir e acabar se deparando com a imagem de Selton e Débora ficando. Seria mais do que ele poderia agüentar. No entanto, se esquecer Selton era justamente sua intenção naquele momento, o que poderia ser melhor do que vê-lo aos beijos com ela? Lembra que Mertiolate ardia? Novalgina não tem um gosto horrível? Talvez o principio fosse o mesmo. Se sofresse, se doesse, se amargasse, esqueceria daquele sentimento descabido e inapropriado. Claro que suas racionalizações não percebiam a inerente falha no plano: que paixão não se esquecesse só porque se quer.

Tinha que levar em consideração também, tudo o que Selton dissera. Não teria outro momento para se divertir com os amigos que não fosse aquele, enquanto ainda era novo – e tinha amigos.

Não podia se esquecer que também tinha lá suas chances de ficar com alguma “gatinha” – “Deus, nem sei como usar esse termo direito!”, pensava. Mas de fato era verdade. Quem sabe, Bárbara não compareceria ao churrasco também. Era muito improvável, já que esse tipo de programa não fazia muito o gênero dela. E se ela não fosse, haveria – com certeza – outras garotas com quem talvez tivesse chance de ficar. E álcool sempre ajuda um pouco nessas horas.

E mesmo que não se desse bem com ninguém, seus amigos estariam lá, teria música, churrasco, sol, piscina. De que forma poderia ser ruim?

Sete - Injeção de Ânimo

Rafael Estava no meio dos seus estudos vespertinos quando ouviu seu celular tocar. Era Selton. Antes que tivesse tempo de atender, parou tocar. Era o código estabelecido entre eles para dizer, sem muitas delongas: “atende a porta”. Derrubou a caneta sobre o livro de física e desceu para atender a porta, com a chave nas mãos. Selecionou a maior chave e abriu o portão de entrada. Rafael estava tão cansado aquele dia que, pela primeira vez, não imaginou nenhuma possível situação picante entre os dois.

- E aí, cara? – Selton apertou-lhe a mão – Não estava dormindo, não, né?

- Nada. Estava estudando a matéria de hoje. Entra aí.

- Achei que depois daquele sono bizarro você entraria em coma até amanhã.

Já tinha entrado na casa e subiram para o quarto de Rafael em silêncio.

- Cara, porque você não vai no churrasco? – Selton perguntou.

- É por isso que você veio aqui? – “Certamente, não foi pra me dar um beijo na boca...”

- Éh, Rafa! Se for grana, posso te emprestar. Depois você me paga.

- Você está parecendo um caixa eletrônico.

- Sério, Rafa.

- Eu tenho grana, Selton. Não estou realmente a fim de ir.

- Porque não? Vai ser maneiro!

“Sim! Vai ser muito maneiro você ver trocar saliva com a Débora...”

- Você sabe que sou mais na minha, não curto confusão, barulho...

- Mas aí tem cerveja, umas caipirinhas, logo, você entra no clima e quando você percebe, você já faz parte da confusão – Selton explanou, tentando convencer o amigo

– Sério, Selton. Não quero mesmo ir.

- Ah! Cara! Pára com isso! Você vai deixar de se divertir com seus amigos agora, enquanto pode, enquanto tem tempo?! É feio beber até cair quando se tem 16 anos, mas é pior quando se tem 36!

- Eu não vou beber até cair! – Rafael protestou.

- Nem eu! Só estou falando que, se existe uma época em que a gente pode se divertir com os amigos sem pensar muito no dia seguinte é agora. Depois é complicado.

- Você é mesmo insistente!

- Sou! Desde pequenininho.

- Eu vou pensar.

- Vai pensar em como a gente vai? Ótimo! Porque não sei se vamos com o pessoal ou pedimos carona para os nossos pais. Acha que vai ser muito vergonhoso?

- Não sei se vou, Selton.

- Você vai sim! Quando se tocar que vai estar perdendo um churrascão! Já te falaram que vão comprar Brahma? Quantos churrascos na sua vida tinham Brahma?!

- E o que isso tem a ver?

- Brincadeira, Rafa! Vai dormir pra gente conversar melhor amanhã! – Selton disse,frustrado, puxando Rafael pelo braço e sentando-o na cama – É difícil tentar te animar quando você está com sono!

- Mas não estou com sono! – Rafael protestou.

- Então está a fim de me irritar!

- Porque você está insistindo tanto que eu vá?

- Você é meu amigo, oras! Vai ser mais legal se você for, ao invés de ficar enfurnado dentro de casa!

Rafael analisou Selton. Ele estava realmente irritado com sua relutância em ir.

- Já disse: vou pensar. Depois te falo se vou ou não vou.

Selton deu de ombros.

- Quer saber, Rafa! – disse, desistindo - Vai dormir. Depois a gente se fala – e simplesmente saiu, sem esperar que Rafael o acompanhasse até á porta.

Seis - Churrasco

Rafael conseguiu assistir a aula de física, depois de tomar toda a Coca-cola, mas mesmo assim, não foi fácil. Teve que se esforçar muito para manter os olhos abertos e acompanhar a monótona aula. Lá pela metade da segunda aula seu sono e mau-humor foram definitivamente embora e ele voltou a ser o Rafael de sempre.

Ao sinal do intervalo, tinha ido com Ana fazer um lanche e quando voltaram a sala ele viu Débora e Selton conversando. Nos últimos dias, os dois pareciam ainda mais próximos, a conversa dos dois estava regada de olhares intensos e sorrisos maliciosos. Antes, só Débora parecia demonstrar interesse, agora Selton tinha entrado no jogo. A ficada dos dois agora era apenas uma questão de oportunidade.

Rafael aprendeu a controlar seu ciúme muito bem. Deixou de sentir aquela raiva abrasadora e a substituiu pela tristeza resignada. Doía-lhe o coração saber que Selton estava se arranjando com uma garota, mas sabia que não podia fazer nada para evitar.

O pior de todo aquele episódio não era nem ter que assistir o flerte dos dois, mas, sim, não ter ninguém com quem desabafar. Ana, sua melhor amiga, nem sabia que ele gostava de Selton – ou de garotos, de uma forma geral. Como dizer a ela que estava com dor de cotovelo? Teria que se conformar e sofrer sozinho, até que se curasse daquela paixão descabida.

Talvez se arranjasse alguém pra ficar também, fosse mais fácil suportar a passagem daquele período sombrio. Alguém não! Uma garota. Chega de sofrimento por causa de membros do sexo masculino! E Rafael até que gostava de garotas; já ficara com algumas e tinha sido bom, inclusive – e não só pra ele. Segundo fontes confiáveis, Rafael beijava bem.

O “x” da questão era: quem? E, depois de escolhida, teria coragem de chegar na garota? E depois de chegar, teria sucesso? Se havia uma coisa que Rafael não sabia fazer direito era pedir pra ficar com uma garota. Pouquíssimas vezes tinha tomado a iniciativa diretamente, quase sempre tinha o dedo mágico de alguém envolvido (leia-se: Ana). Poderia usar a ajuda da amiga agora, ou até mesmo pedir alguns conselhos à Selton que parecia ter muito jeito com as garotas – ainda mais agora que ele estava extremamente prestativo.

Outro ponto que parecia complicado era oportunidade. Não dava pra chegar numa garota e esperar que ficassem no meio do intervalo! Talvez um show ou uma saída com a galera, uns copos de cerveja pra dar coragem, mas das garotas por quem ele se interessaria, poucas saiam com o pessoal, ainda mais pra beber. Cinema parecia uma boa idéia, de preferência um romance ou uma comédia; no entanto, tinha que chamar mais gente, pra parecer casual. “Éh! Cinema parece uma boa”, concluiu.

Esquema decidido, agora precisava escolher alguém. De volta à sala de aula, Rafael ficou mais concentrado em analisar as garotas da turma do que em prestar atenção no que a professora de história estava falando. Rafael descartou, de imediato, todas aquelas que pareciam mais adultas do que adolescentes – e não eram poucas. Aí, tirou aquela com quem realmente não tinha nada a ver com ele, como gostos, idéias, inteligência. Muito pretensioso? Sim, mas afinidade intelectual era requisito básico. Então, restaram as que Rafael achava interessantes e desse grupo ele tirou as que tinha mais chances de aceitar ficar com ele. Depois de toda essa análise, não é difícil perceber que não restaram muitas opções. Pra ser mais preciso, só três.

Uma delas era Bárbara, uma garota baixinha, um pouco menor que Rafael, de cabelos escuros e ondulados, algumas sardas discretas sob os olhos castanhos. Até tinha um corpo bonito, sinuoso, mas sem exageros. Bárbara sempre usava roupas de tons claros e o jeans básico de cada dia. Rafael e Bárbara já se conheciam há dois anos e ele até chegou a gostar dela quando era mais novo, mas sua timidez infinita o impediu de pedir pra ficar com ela. Apesar disso, se tornaram bons amigos. Ela era inteligente, esperta, apesar de um pouco tímida. De uma maneira bem platônica, Bárbara parecia ideal para Rafael.

A última aula estava prestes a terminar e mesmo antes do professor de geografia desse a matéria do dia por encerrada, a maioria dos alunos já começava a guardar as apostilas, fichários e estojos. Quando o assunto “Nova Ordem Mundial” foi encerrado quase todos já estavam prontos para serem dispensados. Antes que isso acontecesse, Rafael viu Bernardo sair do seu lugar no outro extremo da sala, quase nas últimas carteiras, e vir para frente da sala. O pensamento automático de Rafael que o colega ia jogar algo no lixo, mas se surpreendeu quando ele virou quase em sua direção e parou perto de Selton. O cumprimentou com um aperto de mão peculiar, beijou Ana no rosto e apertou a mão de Rafael.

- E aí, gente? – ele disse – Vocês vão fazer alguma coisa esse fim de semana?

A resposta foi unânime:

- Não.

- Até o momento, não.

- É que a parada é a seguinte: eu e o Gustavo estávamos pensando planejando fazer um churrasco nesse sábado agora estou chamando a galera. Vocês topam?

Os três trocaram um olhar titubeante, mas era óbvio que estava animados:

- Conta com a gente – Selton disse por todos.

- Beleza.

- É o seguinte, a gente já acho uma granja no jeito. Os tios do Gustavo têm uma na saída da cidade e podem emprestar pra gente. Ele falou que tem piscina, quadra de futebol, tem até sauna. Perto de onde eu moro tem uma distribuidora de bebidas que vende cerveja a um preço bom e carne é fácil de achar sem gastar muito. Mas como a gente está querendo fazer um churrasco maneiro, a gente pensou em pedir pro povo contribuir com vinte reais – a animação de Rafael, Selton e Ana diminuiu ao ouvir o preço – Éh! Eu sei que é um pouco demais, mas é melhor sobrar do que faltar, né, gente?!

- Quem mais você chamou? – Rafael perguntou, mudando de assunto. Ele sabia que era um tiro no escuro, mas esperava que Débora não fosse convidada.

- A gente está chamando praticamente todo mundo pra dar mais grana e pra ficar legal também, porque churrasco com meia dúzia de gato pingado não dá!

- Tem razão.

- Olha, pode contar comigo – Selton disse – E se precisar de ajuda com alguma coisa é só falar.

- Eu também devo ir – Ana disse – É só falar onde que a gente chega lá.

- Não tenho certeza se eu vou – Rafael anunciou. Ele tinha realmente ficado bem animado com a possibilidade de sair com os amigos e festejar um pouco. Mas quando soube que Débora seria chamada (e com certeza iria), sua empolgação evaporou, afinal, nenhum lugar seria melhor para ele e Débora ficarem.

- Ah! Fala sério, Rafa! – Selton protestou – Por que não?

- Não sei se vou ter grana pra esse fim de semana – mentiu.

Bernardo insistiu:

- Faz uma força, cara. Vai ficar maneiro, você vai ver.

- Não conte comigo.

- Conta, sim, Bernardo! Ele vai! – Selton disse.

- Beleza.

Bernardo se afastou, desviando das pessoas que já saiam de sala. No meio daquela conversa, nem viram que a aula já tinha acabado e já podiam ir embora.