quarta-feira, 28 de julho de 2010

Dez - Delirium

Guilherme dormiu como uma pedra. Quando chegara em casa, simplesmente caíra na cama e apagara, como se alguém tivesse girado sua chave on/off; aquela tinha sido a primeira vez em meses que conseguira pegar no sono antes da meia-noite e dormira a ininterruptamente. Sua mãe estava no hospital depois de tentar suicídio. Isso não afetara seu cansaço.

Só quando acordou na manhã seguinte é que pensou em tomar um banho para se limpar do cloro do churrasco e das bactérias que habitam o ambiente hospitalar. Enrolou o estômago com alguma coisa e voltou para o hospital. No caminho, Guilherme só pensava no que havia acontecido, repetindo várias vezes a imagem da mãe desmaiada na cama, pálida feito uma vela. Relembrou como estava sua rotina nas últimas semanas, de como a mãe estava reagindo à depressão. “Devia ter prestado mais atenção”, repreendia-se.

Chegou ao hospital e, ainda com aqueles pensamentos sombrios em sua mente, foi até o quarto em que sua mãe repousava.

Marina aparentava estar ainda mais apática do que quando Guilherme a encontrara desmaiada. Seus cabelos e pele estavam ressecados, os lábios pálidos e as maças do rosto salientadas. Se não fosse pelos monitores conectados à Marina, Guilherme poderia jurar que ela tinha conseguido morrer. Mas o beep constante dizia que seu coração batia calmamente.

Eduardo estava sentado numa poltrona clara, deitado de lado, com um travesseiro prensado contra o braço do sofá, numa posição extremamente desconfortável. Guilherme teve pena do pai por ter que dormir naquele sofá.

- Bom dia – o pai disse, quando o viu entrar.

- Bom dia – Guilherme respondeu – Ela já acordou?

- Não, ainda não. O médico disse que pode levar um tempo.

- É bom mesmo ela descansar um pouco. Às vezes é só isso que ela precisa – Guilherme disse, desanimado, observando a fraca respiração da mãe – Já comeu alguma coisa?

- Já. Fui na cantina mais cedo.

- Pode ir lá, se quiser. Eu fico de olho nela.

- Não. Eu estou bem.

- Você está parecendo um origami, todo dobrando nesse sofá. Pode ir lá, estica as pernas e almoça.

Eduardo titubeou. Foi o suficiente pra Guilherme saber com certeza que o pai realmente precisava dar um passeio.

- Tudo bem. Eu vou lá e já volto. Qualquer coisa, você me chama.

- Sem problemas – Guilherme respondeu, pensando em como, exatamente, o pai queria que o chamasse se alguma coisa desse errado.

Eduardo se levantou e se espreguiçou, colocando as vértebras e articulações no lugar.

- Já volto, filho – quando Eduardo passou ao lado de Guilherme, deu um forte abraçado e beijou-lhe a fronte. Guilherme sentia falta daquelas expressões de carinho, tão raras, mesmo antes da morte de Lucas. Não que seus pais fossem distantes ou frios. Pelo contrário. Ele que não demonstrava necessidade de carinho. Guilherme sempre fizera o possível para se afirmar como independente, mesmo que às custas de alguns mimos.

Quando seu pai saiu, Guilherme assumiu seu lugar no sofá, confirmando que o móvel não poderia ser mais incômodo. Pelo menos pra dormir. Ajeitou-se como foi possível e tirou um livro da mochila que trouxera de casa. “Deus: Um Delírio”, de Richard Dawkins. Ler seria a única maneira de esperar a evolução do quadro clinico da mãe melhorar sem fritar os últimos neurônios sãos em sua cabeça.

Guilherme estava concentrado nas palavras do livro, nas idéias eloqüentes de Dawkins, quando ouviu um gemido. Alarmado, ele se virou para a mãe, mas ela ainda dormia. Mesmo desconfiado, Guilherme voltou sua atenção para o livro, mas agora estava menos concentrado.

- Lucas.

Agora não tinha duvidas. Embora não fosse um som limpo e alto, ele tinha certeza que a mãe estava sussurrando alguma coisa. Chamando o filho caçula.

Guilherme largou o livro sobre o sofá e foi para o lado do leito onde Marina estava.

- Mãe – ele a chamou – Mãe.

- Lucas?... – Marina gemeu, de olhos fechados, como se delirasse em meio a uma febre cruel.

- Não, mãe. É o Guilherme.

- Guilherme? – ela disse, desconfiada – Pra onde seu irmão foi? Ele estava aqui quase ainda agora – sua voz soava com dificuldade, fraca, falhada. Era evidente que seu sistema ainda não tinha se recuperado dos sedativos – Pra onde ele foi?

“Pra onde ele foi?”, essa era a mesma pergunta em sua cabeça.

Guilherme segurou o choro. Ele era bom nisso. Sempre que sentia a emoção estrangular-lhe a garganta, sufocando-o, ele buscava forças em algum lugar desconhecido, mas que nunca lhe faltara. Inspirou rapidamente e segurou o ar nos pulmões, controlando a resposta do corpo em relação aos seus sentimentos. Tinha certeza que qualquer psiquiatra lhe diria que isso não era saudável, mas em sua lista de prioridades, sua saúde emocional não importava naquele momento.

- Ele saiu, mãe – disse, lutando contra o choro – Ele já volta.

- Ah! – ela disse – Fique de olho no seu irmão, Guilherme. Fique de olho nele...

- Vou ficar, mãe. Não se preocupe. Agora, descanse – ele disse, pegando em sua mão, com cuidado para não mexer na cânula do soro, espetada em sua pele.

- Eu vou – Marina gemeu – Estou muito cansada.

Não chegou nem terminar a frase e já tinha caído no sono outra vez.

Nove - Uma Noite

O dia já estava claro. Mas a sala estava imersa numa escuridão pesada, graças as cortinas grossas nas janelas, providencialmente arranjadas para impedir que a luz do dia atrapalhasse as manhãs de folga. No entanto, as cortinas nada poderiam fazer pela sua inconstância enquanto dormia. Envolvido pelo sono e mumificado pelo lençol, Rodrigo virou o corpo, inconsciente do fato que não estava na sua cama e, sim, na beirada do sofá. A gravidade fez o resto. Com um baque surdo, ele se chocou com o chão frio, despertando, confuso e com o ombro dolorido.

“Caramba, como vim parar aqui?”, pensou, habituado ao fato de dormir quase sempre na sua cama.

Aos poucos, os fatos da noite anterior foram emergindo de sua memória nublada pelo sono e se lembrou porque tinha dormido na sala: Laura. Flashes vividos percorriam sua mente. Os beijos trocados, as carícias, os corpos nus. O sexo! Memorável sexo! Fazia muito tempo que não tinha uma transa tão boa quanto aquela. Aliás, aquela colocava todas as outras no chinelo, mesmo com homens. “Talvez esteja no ramo errado...”

Levantou-se, enrolado no lençol que tinha pego depois a pedido de Laura para dormirem no sofá. E por falar nela, onde estava?

- Laura!- Rodrigo chamou. Seu apartamento parecia vazio. Ele foi ao banheiro, onde mais provavelmente ela estaria, e não encontrou ninguém. Deu uma espiada rápida em seu quarto, mas ela também não estava lá. Voltou à sala, pensando que Laura já era crescidinha demais pra brincar de pique-esconde – Laura! - e reparou bem no cômodo. No chão, só estavam as suas roupas, tiradas quase às pressas, horas atrás. Pegou sua calça e camisa, tirando-as do chão, ainda com os olhos atentos para achar qualquer coisa que fosse de Laura. Revirou as almofadas do sofá, sacudiu o lençol, mas nada, nem um pedaço de pano. “Ela conseguiu levar até os brincos...”, impressionou-se.

Ficou jogado no sofá, pelado e com cara de bobo.

- Ela foi embora...

Oito - Fantasma

Rafael e Selton subiram de volta para o quarto. Enquanto Rafael fechava a porta, Selton já tinha se sentado na frente do computador e esperava que terminasse de ligar.

- A gente podia dar uma volta depois – Rafael sugeriu – O dia parece bonito lá fora – e sentou-se na cama, afastado de Selton.

- Ei! – o garoto moreno o chamou, estranhando a distância – Está com medo que eu vá te agarrar e rasgar toda sua roupa?

- Estou com medo do meu irmão chegar e ver a gente perto um do outro. Sei lá... achar que está acontecendo alguma coisa.

- Ele não estaria errado... – Selton constatou.

- Desculpa. Não quero que pense que estou menosprezando você – Rafael disse, angustiado.

Selton lhe deu um sorriso tranqüilizador. Sua vontade era de levantar-se da cadeira e abraçar Rafael, como quem abraça uma criança machuca que chora por um simples arranhão.

- Eu entendo, meu lindo. A gente tem que ser discreto mesmo.

Rafael se deitou na cama, sentindo a alegria esfuziante que acordara com ele aquela manhã sumir.

- Não era pra ser desse jeito! – disse, visivelmente frustrado – Não queria ter que esconder nosso namoro de ninguém.

Selton não respondeu, porque, na verdade, talvez não tivesse nada pra responder. Aquela questão também era nova para ele. Nunca se envolvera com ninguém por tempo suficiente pra pensar naquilo. Ele era bem resolvido com sua sexualidade e por mais recente que fosse, gostava mesmo de Rafael, mas não estava preparado pra contar a ninguém que estavam juntos, principalmente para sua família.

- Olha, a gente não precisa pensar nisso agora, Rafa – Selton disse, tentando acalmá-lo – Vamos só curtir o momento, sem pensar no que os outros vão pensar se descobrirem...

- Você está certo – Rafael respondeu, pouco convencido – Não é hora pra conversarmos sobre esse tipo de coisa.

- Isso realmente o incomoda, não é? – Selton percebeu com certa tristeza.

- Um pouco. Quero dizer... é tão bom o que está rolando entre nós, certo? Por que temos que namorar escondido?

Selton prendeu a respiração, pensando na resposta mais adequada para dar a Rafael.

- Você nunca pensou em contar pro seu irmão e pra sua mãe que você é gay?

- Nunca! Ficou doido?! Eles não aceitariam! – Rafael disparou, quase que imediatamente.

- Ah! Rafa, não sei. Não sei seu irmão, mas sua mãe parece ser tão legal, tão liberal.

Rafael se tocou, então, que nunca tinha conversado com a mãe a respeito de nada parecido, nunca tinha ouvido sua opinião sobre homossexualidade. Ou talvez - só talvez - tivesse tanto medo de saber o que ela pensava que nunca se permitiu prestar atenção.

- Não sei, acho que tive tanto medo de que alguém descobrisse que nunca me permitir dizer nada a ninguém.

- Olha, não estou dizendo que você deva contar tudo agora! Só estou falando, porque sei o quanto você está aflito.

- Eu não vou contar. Ainda não estou preparado pra isso. Pra ser sincero, não sei quando vou estar.

- Não sei se tenho moral pra dizer isso, mas eu acho que um dia, preparado ou não, você vai ter que dizer.

- Eu sei. Não espero mesmo que seja pra sempre. Mas não quero contar e ser discriminado pela minha própria mãe, pelo Alex. Não sem ter pra onde ir ou correr. Quando eu for independente, talvez eu conte. Mesmo que ela não aceite, vou poder seguir minha vida em paz.

Selton mirou bem Rafael, notou sua expressão consternada. Sentiu a culpa espetar-lhe a consciência. Não devia ter dito nada daquilo.

- Me desculpa – Rafael disse - A gente não namora nem há doze horas direito e já estou surtando.

- Era justamente disso que falei ontem a noite. Existem muitas perguntas por trás do que a gente está vivendo – Selton abaixou a cabeça – Eu mesmo não tenho quase nenhuma resposta pra elas.

Os dois ficaram em silêncio, pensativos, tristonhos. Selton se virou para o computador e começou a mexer em alguma coisa. Rafael percebeu, então, que tinha magoado Selton de alguma forma. Ele tinha as mesmas perguntas na cabeça e nem por isso se deixou levar pelo pânico. Selton gostava de viver a vida, sem pensar em problemas que talvez nem existissem.

- Pode dizer: eu sou um babaca – Rafael disse, de repente.

- Claro que não, meu lindo.

- Eu deveria estar feliz e estou melando nosso clima com assuntos que não têm nada a ver.

- Só tenho medo que você não agüente a pressão... – Selton não teve nem coragem de terminar seu pensamento.

Rafael se levantou e segurou a mão de Selton.

- Eu estou surtando, mas não vou deixar você por causa disso. Só estou dizendo que é injusta nossa situação.

- Eu também estou inseguro. Nunca imaginei que fosse querer namorar sério com alguém. Desculpa.

- Vamos esquecer isso. Você mesmo falou que não precisamos pensar nisso agora. Só curtir o momento.

Selton sorriu, vendo o otimismo em Rafael.

Sete - Outros Planos

Domingo.

Para Hugo, pouquíssimas coisas em sua vida cotidiana lhe davam tanto prazer quanto um domingo. Trabalho era a última coisa em que ele pensava naqueles fins de semana tão preciosos. Podia vestir um bermudão qualquer, uma camisa de algodão e chinelo de dedo. Aquele em particular, era ainda mais especial, porque a mudança da família estava oficialmente terminada. Até onde se sabia, tinha sido tudo desempacotado e colocado em seus devidos lugares. Era possível que ainda houvesse pertences isolados em caixas desconhecidas, mas ficariam por lá até que alguém desse falta deles e conseguisse encontrá-los.

Pra não falar das reformas básicas que toda mudança pede: furos nas paredes para quadros, pintura, metais para banheiros e por aí vai. Felizmente, Mônica conseguira se dividir entre o gerenciamento a distância de sua loja em Brasília e a busca por profissionais para fazer a maior parte dos trabalhos manuais que a casa precisava. Se ela não fosse tão desesperada por deixar tudo em ordem, Hugo mesmo teria feito o serviço, mas é claro que levaria meses pra terminar. Não. Melhor assim, porque poderia aproveitar seu domingo sem correr o risco de martelar o dedo ou se cortar um serra ou outros acidentes que facilmente ocorreriam.

Hugo estava no sofá da sala, assistindo algum Grande Prêmio de Fórmula Um – não se interessava por qual, só queria mesmo olhar pra televisão – quando o telefone tocou. Hugo se contorceu para pegar o fone sem ter que sair do sofá.

- Achei que tivesse se esquecido que tem casa – Hugo disse.

Selton nem se incomodou em perguntar como o pai sabia que era ele ao telefone.

- Ainda não esqueci. Mas me dê mais alguns dias – o garoto respondeu, entrando na brincadeira do pai.

- Vai ficar aí para o almoço, acertei?

- Você já pensou em jogar na loteria?

- Jogo toda semana.

Selton hesitou do outro lado da linha.

- Como está a Dona Mônica? Tudo tranqüilo?

- Olha – Hugo virou para olhar sobre o encosto da poltrona, analisando o que podia ver da casa, procurando qualquer sinal da mulher – Seu irmão ainda está apagado, como é de praxe; então, sim, por enquanto ela está tranqüila.

- Ok. Se precisar, grita - Selton disse.

- Ah! Eu vou!

- Até mais, Hugão.

- Até.

A linha ficou muda.

Hugo encaixou o fone na base, com a mesma dificuldade que teve para tirá-lo, e voltou a assistir a corrida. Mas, assim como antes do telefonema, sua atenção não estava não estava na TV. Seu cérebro não registrava nada do que passava na tela; Hugo imaginava outras coisas em sua mente. Ele gostava de sua rotina dominical, só que já fazia um tempo que precisava quebrá-la.

De supetão, levantou-se do sofá, quase tropeçando enquanto ajeitava os chinelos nos pés ao mesmo tempo em que tentava andar. Quando recobrou o equilíbrio e se pôs definitivamente em pé, ele conseguiu chegar ao pequeno escritório que Mônica achou que deveriam ter. Ela seria a maior usuária daquele escritório, porque, ser empresária era trabalhar em tempo quase integral, ainda mais no caso dela, que era viciada em trabalho.

Como naquele momento. Enquanto Hugo pensava em aproveitar seu fim de semana, longe das obrigações estressantes do dia-a-dia num banco, Mônica tinha ficado o sábado inteiro pendurada na internet, consultando sites de imobiliárias porque elas não abriram depois das duas da tarde do sábado e depois de duas semanas, ela ainda não tinha encontrado uma loja que a agradasse para alugar.

Hugo entrou no escritório e ela nem tirou os olhos da tela do computador. Não importava como estavam os problemas conjugais ou os humores, Hugo não podia colocar os olhos na esposa e pensar em como ele era bonita. Mesmo vestida com seu robe de seda rosa e os cabelos ruivos enrolados num rabo de cavalo meio desajeitado, presos com um palito chinês. Os óculos, aliás, eram segredo, ela só os usava em casa. Em público, só lentes de contato.

Ele deu a volta na mesa e observou atrás da mulher os sites que ela estava visitando. Ao seu lado, estava uma caneca e café, quase cheia. Hugo deduziu que a caneca estava ali desde a hora em que a mulher sentou na cadeira, duas horas atrás. Certamente, já estava frio.

Ele segurou a caneca pela asa e levou a boca, mas antes que pudesse, se quer, sentir o cheiro da bebida, as mãos de Mônica o impediram.

- Ei! – protestou – É meu café!

“Só assim pra conseguir um pouco de atenção”, pensou.

- Já está frio, Mônica!

- É assim que eu gosto – e, talvez só por causa do interesse do marido, ela bebeu um gole do café.

Hugo preferiu não discutir.

- Nada ainda?

- É incrível! Não acho nada nessa cidade que me interesse!

Ela a abraçou por trás, colando os rostos.

- Por que você não pára de trabalhar um pouco e aproveita o fim de semana, assim, com seu marido?

Monica se virou, espantada para Hugo. Fazia tanto tempo que ele não lhe propunha fazer nada que soava até como um milagre.

- Aproveitar o fim de semana? Como?

- Podemos sair, almoçar em algum restaurante. Depois, dar uma volta pra conhecer melhor a cidade.

- Eu já rodei essa cidade de cima a baixo, Hugo... - ela disse entediada, voltando a mexer nos sites.

- Ótimo! Assim você me mostra a cidade, porque eu ainda não tive tempo de fazer um tour.

- Sério, Hugo. Tenho muito o que fazer.

- É domingo, Mônica – Hugo pegou a mão da esposa e afastou-a do mouse – Nem Deus trabalhou no domingo!

- Você não acredita em Deus, Hugo.

- É, mas é o que dizem por aí...

- E os meninos? Vão ficar sem almoço?

- Ah! O Selton vai almoçar na casa do amigo dele e o Júnior, bem... ele se vira.

- Esse é justamente o meu medo, Hugo: do Júnior “se virar”!

- O que você acha que ele vai fazer, Mônica?! Ele não conhece ninguém nessa cidade!

- Que a gente saiba, né?! Ele pode muito bem estar escondendo os amiguinhos delinqüentes!

Hugo soltou a esposa, desistindo de almoçar com ela num pacífico domingo. Argumentar com ela quando se entregava a seus delírios paranóicos era impossível e muito frustrante.

- Certo, Mônica – ele disse – Almoço em casa.

- E onde a gente iria, Hugo? Você mesmo disse que não conhece lugar nenhum nessa cidadezinha.

- Mônica, já desisti. Não precisa continuar a conversa – e se virou para voltar pra sala e assistir, de verdade, a corrida.

- Ok – Mônica disse, se levantando da cadeira – Já que você faz tanta questão.

- Não precisa, Mônica! Tenho certeza que, o que quer que você esteja fazendo nesse computador idiota, é mais importante do que passar um tempo com seu marido!

- Claro que não, Hugo! Pare de ser infantil!

- Eu vou – ele disse, ressentido – Pode deixar.

- Eu estou preocupada com o que o Júnior vai fazer se sairmos.

- “Os gatos saem, os ratos fazem a festa”?

- Você sabe como o garoto é!

- Um “delinqüente”, como você já o definiu diversas vezes!

- Mas ele é! Foi por isso que nos mudamos de Brasília, não foi?

Hugo prendeu a respiração, pra se controlar antes que levasse aquela discussão mais adiante.

- Nós nos mudamos pra termos outra perspectiva da vida.

- Parece que não funcionou muito bem, não é? – Mônica provocou.

- Se você parasse de pensar um pouco em si mesma, talvez funcionasse! – Hugo começou a levantar a voz.

- “Pensar em mim mesma”?! Você ouviu uma palavra do que eu disse?! Eu estou preocupada com o Júnior! – Mônica também levantou a sua.

- Não parece, Mônica! Sinceramente! Desde que chegamos em Juiz de Fora, a única coisa que eu vi você fazer foi tentar que nem uma desesperada abrir essa sua filial!

- Eu preciso trabalhar, Hugo! – ela o interrompeu.

- E seu filho precisa mais do que a sua preocupação, Mônica! Precisa de você! Que você faça alguma coisa por ele! Mas você nunca está aqui, está sempre dando um jeito de evitá-lo, de tratá-lo como... como se fosse indigno do seu tempo!

- Eu amo o meu filho! Meus filhos! Os dois! – Mônica disse, com lágrimas brotando nos olhos. Nada a machucava mais do que diminuir seus sentimentos maternos.

- Demonstre isso, Mônica, ao invés de chamá-lo de “delinqüente”! – aquela discussão poderia durar horas, e Hugo não estava interessado nisso – Quer saber? Desculpa ter te tirado do seu trabalho. Sinto muito. Eu só queria passar um domingo com a minha esposa, coisa que não faço há muito tempo. Claramente, eu estava errado.

Ele deu as costas, sem dar tempo que ela rebatesse, revidasse, ou tentasse de qualquer forma continuar a briga.

Ao se ver sozinha no escritório, Mônica percebeu a estupidez daquela discussão. Todas eram assim. Estúpidas. Mas não tinha como voltar atrás. Ela ajeitou o robe, soltou o cabelo e o prendeu novamente. Tomou um gole do seu café, pra se concentrar no que tinha que fazer. Achar uma boa loja pra alugar.

Seis - Amanhecer

Seis - Amanhecer

A tempestade avançara pela noite, sem trégua, sem descanso, Naquela madrugara chovera mais do que o previsto para o mês todo. Mas a medida que as horas passaram, ela diminuiu de intensidade, até que se tornou uma leve garoa e, por fim, cessou completamente. Quando a manhã nasceu, as nuvens cinza e maciças que cobriram o céu se tornaram nada mais do que nesgas escuras e compridas contra a palidez azul da alvorada, o vento frio de bonança corrias por entre árvores, prédios e postes. O asfalto e o cimento ainda estavam molhados, cobertos de largas poças nas imperfeições do chão.

Rafael despertou com a luz ofuscante do sol entrando por sua janela. Tinha deitado-se na noite anterior tão distraído que se esquecera de fechar a cortina. Sentiu-se feliz, totalmente feliz, o corpo relaxado e calmo. Dormiu como um anjo, teve sonhos maravilhosos.

Espera? Foi só um sonho? Lembrou-se de ter tido uma noite maravilhosa com Selton, te depois de ter chegado em casa do churrasco, se afundou na sua cama, chorou tudo o que podia; então, Selton apareceu para saber o que havia de errado. Acabou se declarando e ficaram. Depois, Selton o pediu em namoro e tomaram banho juntos. Foi um sonho maravilhoso.

Virou-se para o lado para se espreguiçar e acabou esbarrando em alguém.

Não foi um sonho. Selton estava ali, do seu lado, acordado.

- Bom dia, meu namorado - ele disse, docemente.

- Bom dia - respondeu Rafael, dando-lhe, em seguida, um beijo - Não estou a fim de sair daqui. É tão bom ficar do seu lado.

- Melhor, não. Se ficarmos aqui vamos acabar fazendo barulho - disse apontando com o olhar, para baixo, onde seu volume já dava sinais de vida. Então percebeu que ele mesmo estava excitado.

- Ah! Se a gente fizer baixinho, que problema tem?

- Você está me saindo um belo assanhado...

- “Belo”?

- Lindo!

- Fala de novo! – Rafael pediu.

- Lindo!

- Vamos descer, tomar um café, que já deve ter gente em casa.

- Eh! Eu acho que seu irmão já chegou.

- Alex? Chegou cedo, hoje, então.

Selton fez cara de espanto.

- Que horas você acha que é, meu lindo?

- Umas nove.

- São quase onze da manhã, Rafa.

Rafael arregalou os olhos, alarmado.

- Tudo isso?! Por que você não me chamou.

Selton deu um sorriso doce.

- Estava tão bom ver você dormir que nem percebi a hora passar.

- Olha, eu nunca pensei que você fosse ser tão bobo.

- Foi você que me deixou assim – Selton se defendeu, admirando Rafael.

- Vamos lá? – Rafael disse, dando um pulo da cama.

Rafael e Selton, antes de descerem, arrumaram um colchonete no chão e cobriram com alguns lençóis, depois, namoram alguns minutinhos ali, sob o pretexto de bagunçarem para parecer que alguém tinha dormido ali a noite inteiro, para o caso de Alex ou Sueli olharem e não desconfiarem que, na verdade, dormiram a noite inteira abraçados.

Só então desceram para o primeiro andar, ainda de mãos dadas. Quando viraram o corredor, onde alguém poderia vê-los, se soltaram.

Da cozinha vinha o já o familiar ruído de água fervente, colher mexendo e cheiro de alho refogando. Indícios de que Alex estava no fogão, preparando o almoço, vestido apenas com uma bermuda estampada.

Logo o irmão chegou à cozinha, Alex soltou:

- Você dorme, hein! – e quando tirou os olhos da bacia de alface que lavava na pia, se surpreendeu ao ver Selton.

- Ficamos acordados até tarde.

- E aí, beleza? – Alex cumprimentou Selton, com frieza.

- Selton, esse é meu irmão, Alex.

- Tranqüilo? – Selton estendeu a mão e Alex se apressou em secar as mãos na bermuda.

- Prazer.

- O Selton mora aqui na frente – Rafael explicou – E estamos na mesma turma.

- Entendi – Alex disse, voltando a lavar as folhas de alface

- A mãe não chegou ainda, não? – Rafael perguntou, pegando dois copos no armário.

- Não. Ela foi na casa da Lúcia e ficou presa lá por causa da chuva. Ela deve chegar daqui a pouco.

Rafael serviu os copos com suco de uva que ele tirou da geladeira e entregou um à Selton, sentado na bancada da cozinha.

- Te falei que ela tinha ficado presa em algum lugar – Selton disse.

- E você? Não tinha ido num churrasco ou coisa assim?

- Aham! Nós fomos. Chegamos aqui e a chuva caiu. Eu não ia deixar o Selton sair naquele temporal – Rafael e Selton trocaram um olhar, segurando o sorriso de alegria, lembrando-se do que fizeram na noite anterior.

- Saquei – Alex respondeu, distraidamente - O Selton vai ficar pra almoçar com a gente?

- Não, sei. Você quer? – Rafael perguntou.

- Nada. Vou pra casa. Meus pais já devem estar preocupados.

- Deixa de história, cara. Almoça aí – Alex insistiu, sério.

Ele trocou um olhar de indagação com Rafael, que dizia, sem palavras, para que ele ficasse.

- Ok – Selton disse – Se não for muito incômodo.

- Não é, não – Rafael disse – Alex, quando o almoço estiver pronto, você chama a gente? Vamos lá pra cima ver uns vídeos.

- Vai lá. Daqui a pouco eu chamo vocês.

Os dois saíram da cozinha, sem perceber o olhar suspeito e preocupado de Alex.