quarta-feira, 28 de julho de 2010

Dez - Delirium

Guilherme dormiu como uma pedra. Quando chegara em casa, simplesmente caíra na cama e apagara, como se alguém tivesse girado sua chave on/off; aquela tinha sido a primeira vez em meses que conseguira pegar no sono antes da meia-noite e dormira a ininterruptamente. Sua mãe estava no hospital depois de tentar suicídio. Isso não afetara seu cansaço.

Só quando acordou na manhã seguinte é que pensou em tomar um banho para se limpar do cloro do churrasco e das bactérias que habitam o ambiente hospitalar. Enrolou o estômago com alguma coisa e voltou para o hospital. No caminho, Guilherme só pensava no que havia acontecido, repetindo várias vezes a imagem da mãe desmaiada na cama, pálida feito uma vela. Relembrou como estava sua rotina nas últimas semanas, de como a mãe estava reagindo à depressão. “Devia ter prestado mais atenção”, repreendia-se.

Chegou ao hospital e, ainda com aqueles pensamentos sombrios em sua mente, foi até o quarto em que sua mãe repousava.

Marina aparentava estar ainda mais apática do que quando Guilherme a encontrara desmaiada. Seus cabelos e pele estavam ressecados, os lábios pálidos e as maças do rosto salientadas. Se não fosse pelos monitores conectados à Marina, Guilherme poderia jurar que ela tinha conseguido morrer. Mas o beep constante dizia que seu coração batia calmamente.

Eduardo estava sentado numa poltrona clara, deitado de lado, com um travesseiro prensado contra o braço do sofá, numa posição extremamente desconfortável. Guilherme teve pena do pai por ter que dormir naquele sofá.

- Bom dia – o pai disse, quando o viu entrar.

- Bom dia – Guilherme respondeu – Ela já acordou?

- Não, ainda não. O médico disse que pode levar um tempo.

- É bom mesmo ela descansar um pouco. Às vezes é só isso que ela precisa – Guilherme disse, desanimado, observando a fraca respiração da mãe – Já comeu alguma coisa?

- Já. Fui na cantina mais cedo.

- Pode ir lá, se quiser. Eu fico de olho nela.

- Não. Eu estou bem.

- Você está parecendo um origami, todo dobrando nesse sofá. Pode ir lá, estica as pernas e almoça.

Eduardo titubeou. Foi o suficiente pra Guilherme saber com certeza que o pai realmente precisava dar um passeio.

- Tudo bem. Eu vou lá e já volto. Qualquer coisa, você me chama.

- Sem problemas – Guilherme respondeu, pensando em como, exatamente, o pai queria que o chamasse se alguma coisa desse errado.

Eduardo se levantou e se espreguiçou, colocando as vértebras e articulações no lugar.

- Já volto, filho – quando Eduardo passou ao lado de Guilherme, deu um forte abraçado e beijou-lhe a fronte. Guilherme sentia falta daquelas expressões de carinho, tão raras, mesmo antes da morte de Lucas. Não que seus pais fossem distantes ou frios. Pelo contrário. Ele que não demonstrava necessidade de carinho. Guilherme sempre fizera o possível para se afirmar como independente, mesmo que às custas de alguns mimos.

Quando seu pai saiu, Guilherme assumiu seu lugar no sofá, confirmando que o móvel não poderia ser mais incômodo. Pelo menos pra dormir. Ajeitou-se como foi possível e tirou um livro da mochila que trouxera de casa. “Deus: Um Delírio”, de Richard Dawkins. Ler seria a única maneira de esperar a evolução do quadro clinico da mãe melhorar sem fritar os últimos neurônios sãos em sua cabeça.

Guilherme estava concentrado nas palavras do livro, nas idéias eloqüentes de Dawkins, quando ouviu um gemido. Alarmado, ele se virou para a mãe, mas ela ainda dormia. Mesmo desconfiado, Guilherme voltou sua atenção para o livro, mas agora estava menos concentrado.

- Lucas.

Agora não tinha duvidas. Embora não fosse um som limpo e alto, ele tinha certeza que a mãe estava sussurrando alguma coisa. Chamando o filho caçula.

Guilherme largou o livro sobre o sofá e foi para o lado do leito onde Marina estava.

- Mãe – ele a chamou – Mãe.

- Lucas?... – Marina gemeu, de olhos fechados, como se delirasse em meio a uma febre cruel.

- Não, mãe. É o Guilherme.

- Guilherme? – ela disse, desconfiada – Pra onde seu irmão foi? Ele estava aqui quase ainda agora – sua voz soava com dificuldade, fraca, falhada. Era evidente que seu sistema ainda não tinha se recuperado dos sedativos – Pra onde ele foi?

“Pra onde ele foi?”, essa era a mesma pergunta em sua cabeça.

Guilherme segurou o choro. Ele era bom nisso. Sempre que sentia a emoção estrangular-lhe a garganta, sufocando-o, ele buscava forças em algum lugar desconhecido, mas que nunca lhe faltara. Inspirou rapidamente e segurou o ar nos pulmões, controlando a resposta do corpo em relação aos seus sentimentos. Tinha certeza que qualquer psiquiatra lhe diria que isso não era saudável, mas em sua lista de prioridades, sua saúde emocional não importava naquele momento.

- Ele saiu, mãe – disse, lutando contra o choro – Ele já volta.

- Ah! – ela disse – Fique de olho no seu irmão, Guilherme. Fique de olho nele...

- Vou ficar, mãe. Não se preocupe. Agora, descanse – ele disse, pegando em sua mão, com cuidado para não mexer na cânula do soro, espetada em sua pele.

- Eu vou – Marina gemeu – Estou muito cansada.

Não chegou nem terminar a frase e já tinha caído no sono outra vez.

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