quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Vinte - Primeiro Encontro

Como combinado, Rafael e Selton se encontraram e foram a uma lanchonete num bairro próximo, dava pra ir andando em menos de dez minutos. No caminho, tentavam parecer apenas amigos, mas sempre trocando olhares cúmplices e intensos. Rafael finalmente estava tendo o que queria, alguém pra ficar perto dele, alguém que o faria companhia, além de outras coisas...

Sentaram à mesa, com medo que os outros clientes da lanchonete reparassem que eram mais do que amigos. Era, na verdade, engraçado que ficassem tão temerosos. Afinal, não havia motivos para suspeitarem, havia? Por via das dúvidas, sentaram-se um em frente ao outro, mas encostados na parede.

- Quer tomar uma cerveja?

- Não. Minha mãe me mata se eu chegar em casa alcoolizado, hoje.

- Falou o filhinho da mamãe...

- Falou o rebelde sem causa.

- Pára de ser tão certinho, Rafa. Só uma cerveja não vai matar ninguém, não! – Selton argumentou, entusiasmado com a idéia de convencer Rafael.

- Já estou vendo que você vai ser uma má influência.

- “Luke, come to the dark side” – Selton disse, forçando a voz.

Rafael riu.

- Nunca vi ninguém que fizesse mais citações pop do que você.

- Eu sou o máximo.

- E modesto também.

- Não vai querer mesmo, não? Nem uma latinha?

- Melhor, não.

- Beleza. Mas você sabe que sua mãe não ligaria, não é.

Um garçon trouxe o cardápio e os dois pediram um X-Bacon cada um e uma Coca de um litro e meio. Rafael ainda protestou que seria muito, mas Selton disse que se sobrasse refrigerante poderiam levar pra casa. O garçon foi fazer o pedido na cozinha e logo trouxe o refrigerante e dois copos. Servidos, Selton os levantou levemente, propondo um brinde:

- Ao garoto mais lindo que eu conheço – ele disse, baixinho.

- Ao garoto mais lindo que eu conheço – Rafael disse, batendo os copos.

Os dois tomaram um gole do refrigerante e ficaram algum tempo sem assunto, até que Rafael disse:

- Eu não queria falar nisso, agora, mas tem uma coisa me incomodando desde o almoço.

- Sobre o quê? – Selton perguntou.

- Sobre você e a Débora.

- O que tem? – Selton se fez de desentendido.

- Não tem mais nada entre vocês mesmo? – “Por favor, diz que não!”

- Rafa, já disse. Meu lance com a Débora foi só uma ficada. Desde que o conheci que sou afim de você e só fiquei com a Débora porque achei que você não queria nada comigo – Selton explicou – Eu e você estamos, agora. E é com você que eu quero ficar.

- E ela pensa assim também? – Rafael disse, temeroso – Por que eu nunca a vi tão empenhada e ficar com alguém quanto ela se empenhou pra ficar com você.

- Isso não quer dizer que ela esteja apaixonada por mim, Rafa. E se estiver, vou explicar pra ela que não estou afim de nada sério com ela. Aliás, agora, nem por diversão mais.

- Tem certeza?

- Tenho, meu lindo. Pode ficar tranqüilo porque a única boca que eu vou beijar é a sua.

- Sério?

- Sério.

- Sei lá... eu tenho medo de...

- Não tenha.

- Ok – Rafael se convenceu, finalmente – Devo ser a pessoa mais paranóica que você conhece.

“Você ainda não viu minha mãe”, Selton pensou.

- Só um pouquinho.

O lanche demorou mais uns dez minutos para ficar pronto. Comeram enquanto conversavam, tentando disfarçar. Depois foram embora e pararam na praça do bairro para conversarem e beberem o restante da Coca que sobrou – como Rafael previra. Lá pelas tantas, Rafael lembrou que teriam que acordar cedo pra ir a aula e, sob protestos, se separaram para dormir cada um em sua casa.

Dezenove - Esperto

Marina não acordou, o que atiçou o desespero de Guilherme. Sua mãe já estava desacordada há mais de vinte e quatro horas e não esboçava qualquer menção de recobrar a consciência. Já tinha terminado de ler seu livro e não tinha mais nada pra passar o tempo e tapear a ansiedade.

E, além de sua mãe em estado comatoso, o pai tinha voltado ao quarto tenso depois de atender o telefonema do amante. Guilherme não precisava ser um gênio pra saber que eu estava a par da situação e não ligou pra ter notícias. Pessoas são previsíveis. Seu pai, por outro lado, não gostara, por motivos talvez não tão óbvios.

- Qual é o nome dele? – Guilherme perguntou, pra quebrar o silêncio.

- Agora não, Guilherme. Sua mãe pode acordar a qualquer.

- Ela não acordou até, agora. Acho que podemos abandonar qualquer esperança disso acontecer nas próximas horas.

- Carlos – Eduardo respondeu, à contra-gosto – Vamos terminar esse assunto aqui!

- Foi ele que ligou, não foi?

- Por que você quer falar disso logo agora?

- Passar o tempo?...

- Essa não é uma boa razão, Guilherme.

- Você acha mesmo que quando ela acordar, ela vai estar lúcida o suficiente pra escutar o que estamos falando e ainda por cima, guardar na memória o que ouviu?!

- Por que você está insistindo tanto pra conversar sobre isso?

- Estou preocupado com você – Guilherme disse, esperando que fosse uma “boa razão”.

- Não precisa. Não deve! – Eduardo disse, tentando encerrar o assunto definitivamente.

Guilherme usou seu cérebro rápido para pensar em algum modo de fazer o pai falar sobre o que estava sentindo em relação a tudo aquilo: mulher deprimida, filho sobrecarregado, relacionamento homossexual extra-conjugal. Sabia que se não fizesse o pai falar, ele explodiria, cedo ou tarde. Teria que recorrer ao que fazia de melhor: manipular.

- Desculpe. Estou nervoso com tudo o que está acontecendo.

- Nós dois estamos, filho – Eduardo disse, recuperando a compostura.

- Já está ficando tarde. Por que não vai em casa tomar um banho, trocar de roupa e fazer uma refeição descente?

- Não é necessário. Estou bem.

- Você está com essa mesma roupa desde ontem à noite – insistiu – E, honestamente, o cheiro não esta ficando muito agradável.

- Eu não vou deixar sua mãe sozinha, Guilherme.

- Ela não vai estar sozinha. Vou estar bem aqui até você voltar.

- Quase me esqueci que amanhã você tem aula...

- Então.

- Pode ir. Vá você pra casa e descanse. Se alguma coisa mudar aviso.

Guilherme teria que ser um pouco mais incisivo:

- Ainda está cedo. Dá tempo de você voltar no apartamento, trocar essa roupa imunda...

- Eu não vou embora, Guilherme. Pode ir se quiser. Aliás, você tem que ir!

“Ok. Acabaram-se as indiretas, mas cheguei onde queria”

- Você não quer voltar ao apartamento, quer?

- Do que você está falando? – Eduardo perguntou, ciente de que já tinha sido analisado pela perspicácia ímpar do filho.

- Desde que o Carlos ligou, você não saiu mais do quarto. Pra nada!

Eduardo foi evasivo:

- Bobagem.

- Ou é culpa ou é medo... – Guilherme cogitou. “Ou os dois...”

- “Culpa”? “Medo”? De quê? O que você quer arrancar de mim, Guilherme?! Tudo o que aconteceu já não é estressante demais pra você ficar me irritando com perguntas que não lhe interessam?!

- Ou você não quer sair daqui por culpa por ter deixado a mãe chegar a esse ponto, ou você está com medo do que pode acontecer se voltar ao seu apartamento!

Eduardo quase gritou; quase estourou. Conseguiu se controlar no último segundo.

- Já estamos com coisa demais pra lidar neste momento, Guilherme! Pare de ser criança e entenda isso, pelo amor Deus.

- Se sentir culpado não vai fazer as coisas mudarem, pai! E ter medo de enfrentar o que pode acontecer só vai piorá-las!

- Você não sabe do que está falando, Guilherme.

- Você não sabe o que está fazendo, pai. Ignorar o indesejável foi justamente o que nos trouxe até aqui.

Eduardo se calou por alguns instantes, digerindo o que o filho disse.

- Não sei como você consegui ficar mais esperto do que eu.

- Ainda dá tempo de ser mais esperto.

Eduardo suspirou.

- Certo. Vou em casa o mais rápido que puder e volto pra te liberar.

- Vai lá, pai.

Dezoito - Perfeito

Selton não se lembrava de ter sentido nada nem remotamente parecido com o que sentia naquele momento. Era como tomar uma bebida quente e muito doce, com um suave toque de canela. Todas as outras pessoas com quem cruzara, mexeram com ele de alguma forma, nem que fosse pelo puro e destilado tesão. Mas Rafael tinha algo de diferente, que Selton não podia explicar. Só sabia que seu colega/vizinho e agora namorado, não era como os outros. Era alguma coisa no olhar, talvez?... O ar de garoto triste?... Ou seria apenas a incrível sucessão de coincidências que cercou o começo da história dos dois?... Não sabia e não importava! Só importava a felicidade que sentia ao pensar no garoto loiro do outro lado da rua.

“Garoto, não!”, Selton pensou, lembrando-se da determinação que Rafael tinha. Já tinha saído com caras alguns anos mais velhos que não tinham nem metade da certeza que Rafael sustentava no olhar. Claro que ele se sentia assustado, afinal, se relacionar com um homem era novidade pra ele, mas tinha encarado toda a situação muito bem. “Meu garoto. Meu lindo”. Era orgulho que estava sentindo?

Teria que sentir outra hora, porque tinha que se arrumar para encontrar o namorado – não se cansava de repetir em sua cabeça. Tomou um banho rápido, lembrando-se da madrugada. A simples imagem de Rafael todo molhado, nu, na sua frente... Por pouco não tocou uma punheta rápida de baixo do chuveiro. Não! Aqueles tempos ficaram para trás. Tinha que poupar sua energia para o namorado, porque, mesmo iniciante, ele não pegava leve. Aliás, cama era outro quesito que Rafael se mostrou muito melhor do que Selton podia imaginar. Já tinha transado com outro garoto virgem uma vez e praticamente teve que dar uma aula à ele. Rafael, não. Rafael soube exatamente o que, quando e como fazer, sem precisar de instrução alguma.

Saiu do banho, enrolado na toalha, porque, ao contrário de Rafael não tinha a comodidade de uma suíte. Ainda havia gotas espalhadas pelo seu corpo e seu cabelo estava úmido. Voltou ao seu quarto rapidamente e fechou a porta pra se vestir com privacidade. Abriu as portas do armário, para escolher a roupa que vestiria, e percebeu que estava ansioso para reencontrar Rafael. Não se viam a pouquíssimas horas e já queria estar com ele outra vez. Não precisaria nem beijá-lo ou tocá-lo, só queria mesmo vê-lo.

Pegou uma camisa verde água com estampas tribais e uma bermuda branca de tactel. Tirou uma cueca boxer preta da gaveta, imaginando qual seria a reação de Rafael ao vê-la em seu corpo, marcando seu saco e seu pau. Modéstia a parte, ficava muito gostoso com aquela cueca. Vestiu a camisa e a bermuda, calçou uma meia e ajeitou o cabelo com um pouco de gel. Olhou-se no espelho e gostou do resultado. Pegou o tênis e quando estava amarrando o cadarço, seu irmão entrou no quarto.

- Brow, meu cd do Natiruts veio parar nas suas coisas?

Selton olhou rapidamente para Júnior e notou que ele estava um pouco estressado.

- Cara, não o vi por aqui.

- Brincadeira!... Só falta a Dona Mônica ter jogado o cd fora! – ele disse, revoltado. Não seria a primeira vez que Mônica jogava as coisas do filho mais velho sem mais nem menos (ou pelo menos, Junior enxergava a questão daquele jeito).

- Vai com calma, Brow. Estressa antes da hora, não. Procura direito nas suas coisas, que devem estar lá – Selton advertiu, terminando de dar o laço no cadarço.

- Já procurei, cara.

- Sério? Porque naquela bagunça que está seu quarto, nem uma equipe de resgate da marinha conseguiria achar o que quer que fosse ali dentro.

- Qual é?! Você também vai começar a encher o saco, agora?! Desde que a gente mudou pra cá, você só tem me tirado.

Selton, de tênis completamente calçados, voltou ao espelho do guarda-roupas, pra dar uma última olhada no visual e conferir se faltava alguma coisa. Cogitou usar uma corrente de prata que só usava em ocasiões muito especiais, mas um cordão de sementes fosse mais casual. Catou as duas um uma das prateleiras do armário e as mostrou para o irmão.

- Qual delas? Prata ou semente?

- Depende. Já pegou ou vai pegar?

Selton pensou.

- Pretendo continuar pegando.

Junior estranhou a resposta do irmão.

- Sério? Você? Ela deve ser muito gostosa.

- Ah! Não zoa! Nunca fui esse galinha que você acha que sou! - Selton indignou-se.

- Não. Claro que não. Você só dizia que não tinha sido feito pra namorar sério.

- Não tinha achado a pessoa certa, ainda.

Júnior duvidou:

- E a achou aqui?

“Do outro lado da rua, pra ser mais exato”

- Aham. Agora, diz: a de prata ou a de sementes?

- A de prata – disse enfim – Vai sair de novo?

- Vou, mas devo voltar daqui a pouco.

- Aproveite por mim, porque estou vivendo praticamente em cárcere privado. Você acredita que o pão acabou e a Dona Mônica não me deixou ir na padaria?!

- Eu já disse que ela está exagerando, Hugão já falou também, mas você sabe que ela é biologicamente incapaz de ouvir outra pessoa que não seja ela mesma.

- Éh! Eles brigaram, hoje outra vez – Júnior disse.

- Fiquei sabendo – Selton respondeu, cansado daquela dinâmica familiar – Dona Mônica não facilita.

- Não mesmo. Você acha que um dia ela vai confiar em mim?

Selton foi pego de surpresa. Não que já não tivessem tido aquela conversa. A felicidade de ter ficado com Rafael tinha ofuscado aquele lado de sua história, a família complicada, os conflitos que tinha que apartar quase todos os dias.

- É pra isso que nos mudamos pra cá. Pra que você tivesse outra chance.

- Mas é a última, não é?

“Claro que não”, foram essas as palavras que quase saíram da boca de Selton, mas sabia que não podia dizê-las, se quisesse que o irmão superasse seus problemas.

- Acredito que sim... – mentiu – Olha, a Dona Mônica te ama, só não entende como você foi se meter com tanto problema.

- Diferente de você, que nunca se meteu em problema nenhum – Júnior disse, com uma nota de ressentimento, ou talvez inveja.

- Isso não é verdade.

- Você sempre foi o filho perfeito.

- Não começa, Brow! Você sabe que isso não é verdade! Só dê um tempo para as coisas se ajeitarem. Daqui a pouco, a Dona Mônica consegue um lugar pra trabalhar e ela vai parar de pegar tanto no seu pé.

- Duvido, Brow.

- Vai sim, cara. É só ter um pouco de paciência.

Dezessete - Aguardando

Ana ficou com Rafael até a noite, e conversaram sobre todos os detalhes do que aconteceu entre ele e Selton. A garota tinha ficado tão feliz quanto amigo. Não era apenas empolgação ou pelos fatos. Estava feliz por ele ter despido aquele preconceito contra ele mesmo e, portanto, estava livre de se culpar e se torturar. Poderia agora, curtir a vida e um cara legal.

- Ah! Eu me derreti todo quando acordamos e ele disse “bom dia, meu namorado”... – Rafael comentou, realmente, todo “derretido” – Não consigo acreditar até agora no que esta acontecendo!

Ana riu.

- Será que você alucinou tudo?

- Nem fala uma coisa dessas! – ele riu junto – Sabe? Estou aliviado de poder conversar sobre isso com você.

- Que você é gay? Achei que tínhamos passado dessa fase, ontem.

- Não! Quero dizer, disso também, mas de namoro. Antes era uma conversa de mão única. Só você falava.

- Eh! Agora, só você vai falar por um bom tempo. Não estou querendo nada de namoros ou ficadas por enquanto.

- Você só não fica com ninguém por que não quer.

- Ah! Rafa, não estou afim de confusão, entende? E namoro sempre dá.

- Nem me fale... Estou com medo do meu namoro dar problema.

- É só vocês serem discretos, Rafa.

- Foi o que a gente combinou. Mas nem tudo sai como planejado.

- Não começa, Rafa - Ana advertiu – Não entre em paranóia.

- Ok! Parei.

Não demorou muito e o celular de Rafael tocou.

- Oi, meu lindo – Selton disse - E, então? Está pronto?

Simplesmente, ouvir a voz do namorado, foi o bastante para fazê-lo sorrir.

- Não! A Ana veio pra cá e a gente ficou conversando. Mas em dez minutos eu tomo banho e a gente sai. Quer vir pra cá e me esperar?

- Você já contou pra Ana sobre a gente?

- Contei. Mas não se preocupa não, ela não vai contar pra ninguém.

Selton aparentemente não gostou muito daquilo, parecia desconfiado.

- Algum problema?

- Não, nenhum. Ela é sua amiga. Minha amiga. Não tem problema nenhum!

- Não se preocupe. Ela não vai contar nada pra ninguém que não deva.

- Ok. Mas vou esperar aqui, quando você terminar de se arrumar, me liga e a gente se encontra no portão.

- Está bem. Daqui a pouco eu te ligo.

- Era o “namô”? - perguntou Ana, quando ele desligou o telefone.

- Era ele sim. Vou tomar um banho e me arrumar. Você me espera?

- Claro. Vai lá.

Dezesseis - O Que Deve Ser Feito

O médico apareceu no quarto para checar Mônica, chamando a atenção de Guilherme e Eduardo.

- Boa tarde – ele disse, simpaticamente.

- Boa tarde, doutor – Eduardo disse, ao se levantar do sofá, observando o médico analisar o monitor e verificar a resposta das pupilas. Olhou a dosagem do soro e pareceu satisfeito. Anotou alguma coisa no prontuário dela e virou-se para Eduardo.

- Tem certeza que não querem restringir os movimentos dela?

- Não, doutor. Não será necessário – Eduardo disse, firmemente – Sei que o que aconteceu não foi um acidente, mas tenho fé que ela não vá tentar mais nada.

O médico assentiu.

- Como queira. O estado dela está bem estável, não deve haver nenhuma seqüela.

- Ela ainda vai demorar pra acordar.

- Acredito que não. Sua esposa deve recobrar a consciência em breve

- Obrigado, doutor.

- Com licença – o médico disse, antes de se retirar.

Eduardo sentou-se ao lado do filho e ficou assistindo televisão, enquanto Guilherme continuava, silenciosamente, sua leitura.

- Como você acha que vai ser, quando sua mãe acordar? – Eduardo perguntou, a voz carregada de receio.

Guilherme não tirou os olhos das páginas.

- Estou preferindo não pensar muito nisso.

- Éh! Você provavelmente tem razão - disse, incerto – Só não quero piorar as coisas. Você sabe que sua mãe me culpa pela morte do seu irmão e me ver aqui quando acordar, pode fazê-la perder o controle.

Guilherme não soube o que responder ao pai, porque ele mesmo achava que era possível ela ter outro surto ao ver o marido.

- Espero que ela acorde melhor – Guilherme disse, enfim – Ela não tem dormido bem desde que Lucas morreu. Talvez esse sono a ajude a se recuperar.

- Você acha?

- Espero que sim.

- É ingenuidade nossa achar que os problemas da sua mãe vão se resolver com uma bela noite de sono – Eduardo disse, com um riso amargo no rosto.

Guilherme concordou, achando graça de sua própria idéia.

- Me arrependendo tanto de ter deixado vocês – Eduardo disse – Se tivesse ficado do lado de vocês ao invés de ter fugido.

- Não é hora de pensar nisso, pai. Não vai mudar o que aconteceu. Não vai mudar nada. Nem o que a mãe fez ou Lucas.

Eduardo olhou para o filho, com admiração.

- Sabe, é incrível como você sempre acha um jeito de estar certo.

- Não é fácil. Às vezes é bom estar errado – Guilherme disse, com um tom sombrio.

Eduardo percebeu a tristeza do filho – seria difícil não notar. Ele pôs a mão no ombro do filho e apertou, com peculiar solidariedade paterna.

- Vai dar tudo certo, daqui pra frente. Vamos parar de deixar as coisas confortáveis e fazer o que deve ser feito.

- Parece um bom plano pra mim.

Eduardo puxou o filho e deu um abraço apertado nele, como há muito tempo não dava. Mesmo a sensação de que suas costelas pudesse se partir a qualquer momento, não impediu Guilherme de apreciar o abraço, que estava imbuído da sensação tão necessária de mudança. Alguns males vêm para o bem.

Quando se soltaram do abraço, Eduardo estava com os olhos marejados. Às vezes, Guilherme se perguntava à quem tinha puxado, porque sua família toda era meio sentimental enquanto ele parecia mais frio.

- Não é pra tanto, pai.

- Desculpa, Guilherme. É que o estresse da situação já está começando a mexer com a minha cabeça.

Guilherme deu um sorriso meio torto.

- Sei...

No meio daquela cena familiar, alguma coisa começou a fazer barulho. Guilherme achou que fossem os monitores ligados a mãe e se alarmou, mas era o celular do pai.

A alegria serena que Eduardo tinha no rosto foi embora quando ele olhou para o display do aparelho; ficou sério demais. Mirou o filho, titubeante. Guilherme soube imediatamente do que se tratava. Era o amante do pai, ao telefone.

- Tenho que atender essa ligação – Eduardo falou.

Guilherme apenas balançou a cabeça, assentindo.

- Vou atender lá fora. Desculpe.

Eduardo saiu com o celular na mão, enquanto, Guilherme o acompanhava com os olhos, pensando: “‘O que deve ser feito’. Éh, pai! O que deve ser feito?”

sábado, 31 de julho de 2010

Quinze - Finalmente, Compartilhando

Rafael espumando como um cão raivoso, seus passos quase partiram os degraus da escada ao meio. Incrível como Alex podia melar toda a sua felicidade! Ana, que o seguia de perto, achou graça do estresse do amigo.

Os dois entraram o quarto do garoto e ele fechou a porta.

- Se acalma, Rafa.

- O Alex me irrita, Ana!

- É a função dele de irmão.

- Sorte sua, ser filha única!

- Ok. Mas me conta logo! O que aconteceu que você está desse jeito! Parece que está até brilhando!

Rafael se acalmou, como se um anjo tivesse soprado em seu ouvido e feito toda a raiva sumir de sua pequena cabecinha. Não sabia direito por onde começar. Então, achou justo e óbvio, começar do começo:

- Depois da festa, cheguei em casa e me tranquei no quarto, fiquei me lamuriando, chorando e tudo o mais - disse, achando-se idiota por ter passado por aquilo.

- Conheço o ritual - disse Ana entediada - Continue.

- Então. Só que na festa, eu tinha derramado cerveja no Selton e molhei a camisa dele toda. Aí, emprestei uma camisa minha que estava sobrando.

- Você está me enrolando!

- Calma! Bem, aí, de noite, ele veio me devolver a camisa. Quando, entrei, eu não bati o portal da frente e, como ele é quase de casa, ele veio sem bater. Como não tinha ninguém no andar de cima, ele subiu, veio pro quarto e me viu chorando.

Ana ficou surpresa:

- Sério!

- Aham! Aí, ele ficou preocupado, me perguntou um monte de coisas. Ele achou que eu estava assim por sua causa...

- Minha causa?!

- Éh! Essa maldita história de que a gente fica. Ele achou que eu estava mesmo afim de você, só que você não estava afim de namorar comigo e estava me enrolando!

Ana riu alto.

- Como esse povo viaja!

- Pois é! Falei que não era nada daquilo. Aí, ele achou que eu estava a fim da Débora e se desculpou por ter ficado com ela e disse que pra ele tinha sido só uma ficada e nada mais.

- Eu não disse!

- Disse - Rafael admitiu. Incrível como as pessoas diziam aquilo com tanto prazer - Quando ele falou isso, fiquei mais aliviado. Sei lá, tirei um peso das costas! Imaginei que ia ver os dois todo dia na escola, abraçados namorando, feliz para sempre!

- Por isso você está desse jeito. Só porque ele disse que não tinha nada com a Débora.

- Não! O melhor ainda está por vir!

- Então conta logo de uma vez, porque não estou mais me agüentando!

Rafael tomou fôlego. Estava chegando na parte que realmente importava.

- Quando fiquei mais aliviado, não sei o que me deu, só sei que contei que gostava dele.

O queixo de Ana foi ao chão!

- Você se declarou pra ele?

- Sim.

- E ele? - perguntou Ana, mal se segurando na cadeira.

- Me beijou.

- O QUÊ?!!

- Ele me beijou! Simplesmente, pulou em cima de mim e me beijou - disse Rafael sorrindo, não conseguiria esconder sua felicidade nem se quisesse.

- Ele te beijou, assim, só de você dizer que era afim dele?

- Aham! Aí, ele me pediu desculpas por ter ficado com a Débora na minha frente, falou que também era afim de mim, mas que tinha desistido depois que falei que não era gay e que tinha ficado chateado pelos comentários do Guilherme.

- Eu nunca ia desconfiar dele – Ana disse. Era mentira. Claro que ela não tinha certeza, mas estava desconfiando que toda aquela amizade de Selton por Rafael era mesmo apenas amizade. Mas não achou importante revelar que suas suspeitas tinham se confirmado.

- Nem eu!

- Por isso, esse colchão ainda está do lado da sua cama? Ele dormiu aqui? O que vocês fizeram essa noite?

Rafael ficou um pouco envergonhado.

- Tudo.

- Tudo?

- Eh! Tudo!

- Vocês transaram?

- Transamos!

- Que isso!!! Vocês transaram?!

- Foi perfeito!

- Você é bem fácil também, hein?! Nem pra fazer um doce, segurar um pouco mais a onda! Logo na primeira ficada você já abre as pernas!

Rafael pegou o travesseiro da cama e bateu na amiga, deu várias pancadas nela. Era óbvio que os dois estavam apenas brincando.

- Você também abriria as pernas, se estivesse na mesma situação que eu!

Os dois riram até faltar ar nos pulmões.

- Mas espera aí, vocês usaram camisinha, né?

- Lógico! Não sou estúpido, nem ele!

- Que bom! Não acho que ele tenha alguma coisa, mas nunca se sabe, né?

- Também acho que não, mas ainda não é a hora de largar a camisinha de lado. Talvez mais pra frente.

- Como assim “mais pra frente”?

- Não tem contei o melhor!

- Ainda tem “o melhor”?!

- Ele me pediu em namoro.

O baque foi tão forte que Ana nem se atreveu a rir.

- Ele te pediu em namoro?

- Aham! Namoro!

- Onde o mundo foi parar?

- Não sei. Só sei que estamos namorando!

- Gente que evolução! Pra quem ontem estava se lamuriando por achar que nunca ia ficar com ele, de repente, fica, transa e agora estão namorando! Sua noite foi movimentada!

- Demais! A melhor noite da minha vida!!!

Catorze - A Mesma História

E não demorou, mesmo!

Dez minutos depois, Ana estava batendo a campainha. Rafael se levantou num pulo da cama e saiu disparado até o portão.

- Pode deixar, Alex! É pra mim! - ele gritou, enquanto descia as escadas.

Mal podia esperar para contar a amiga o que tinha acontecido na noite anterior.

- Boa tarde, minha criança - disse Ana abraçando e dando um beijo no rosto de Rafael - O Papai Noel passou aqui mais cedo, por isso essa empolgação toda?

- Não, mesmo porque o Papai Noel não gosta de calor! - respondeu ele - Entra aí.

Os dois passaram pela sala, e logo que viu Alex sentado na sala, vendo televisão ela disse:

- E aí, Alex, tudo bem?

- Tudo bem, Ana – ele disse, se levantando para cumprimentá-la apropriadamente.

- Ouvi dizer que você está namorando sério, agora... – Ana disse, enquanto era envolvida pelos muito bem desenvolvidos braços de Alex. Ela conhecia o histórico comprido de mulheres que Alex ostentava. Aliás, Rafael achava que esse era o único motivo pelo qual ela nunca dera muita bola para o irmão, afinal de contas, qualquer uma que colocava os olhos em Alex era imediata e irremediavelmente encantada.

- Ouvi dizer que você se trancou com meu irmão no churrasco de ontem... – ele rebateu a provocação.

- Você já pensou em ser um pouco mais sutil? - Rafael perguntou, achando ruim a grosseria do irmão.

- Ela começou, Rafa.

- A palavra “cavalheirismo” te lembra alguma coisa?

- Relaxa, Rafa. É só brincadeira.

Rafael deu um muxoxo.

- Mas, aqui, essa história é séria mesma – Alex perguntou a Ana.

- Você não consegue esquecer esse assunto, não?! – Rafael exasperou-se, irritado com a repetição do assunto.

Ana e Alex arregalaram os olhos pra Rafael.

- Já ficou chato, já! – ele continuou.

Ana caiu na gargalhada:

- Rafael, não precisa isso tudo. Saciando sua curiosidade, de uma vez por todas, Alex: sim, nós ficamos trancados no quarto, mas não rolou nada além de um abraço e uma boa conversa.

Alex torceu a cara.

- Tem certeza?

- Chega, Ana! Vamos lá pra cima.

- Vamos. Alex, até daqui a pouco.

- Até, Ana – Alex disse, pouco convencido da explicação dela.

Treze - Telefonema

Assim que terminou seu almoço, Alex pediu licença da mesa sempre com aquele olhar estranho, vigilante, e foi para a sala assistir televisão. Rafael e Selton ficaram na mesa com Sueli, fazendo-lhe companhia enquanto ela não terminava de comer. Conversavam sobre o sábado e a tempestade inesperada. O que nenhum dos dois lados da conversa sabia é o que o outro estava omitindo os fatos mais interessantes do dia anterior. Sueli não falaria que tinha ido almoçar com um admirador quinze anos mais novo do que ela, e Rafael jamais falaria que tinha transado sabe-se lá quantas vezes com Selton e que naquele exato momento eram namorados. Ele se impressionou, na verdade, em como conseguiram disfarçar bem tanto a relação quanto a felicidade esfuziante que sentiam.

- Bem, meninos. Agora, vou para o meu escritório, porque eu ainda tenho muita coisa acumulada pra fazer. Selton, fique a vontade, a casa é sua.

- Eu vou, Sueli – ele disse, dando um sorriso maldoso pra Rafael, sem que ela percebesse – Obrigado.

- A gente também vai subir daqui a pouco – Rafael disse, na tentativa de distrair sua mãe da malícia do namorado - Só vou lavar a louça.

- Ah! Obrigada, meu anjo – ela deu um beijo na testa do filho e disse – Até mais meninos.

- Até, mãe.

Sueli foi para seu escritório e Rafael começou a juntar os pratos e talheres para lavá-los.

- Garoto responsável – Selton caçoou – Lavando a louça pra mamãe.

- Deixa de ser chato.

- Só estou de brincadeira com você.

Rafael pegou tudo e colocou na pia, abriu a torneira e jogou detergente neutro na esponja.

- Vamos dar uma volta mais tarde? – perguntou.

- O que acha de pegarmos um cinema mais tarde? – Selton sugeriu.

- Cinema? Muita... gente, não? – Rafael disse.

- Ah! Dá pra ficar de boa no escurinho...

Rafael chiou:

- Fala baixo! Meu irmão vai te ouvir!

- Desculpa. Ok, cinema, não...

- Por enquanto – Rafael ressalvou.

- Lanche?...

- Parece uma boa. Mas lanchonete só abre mais a noite.

- Qual o problema?

- Sei lá... Seus pais não vão achar estranho você ficar o dia inteiro fora? O fim de semana na verdade.

- Está querendo se livrar de mim, Rafa? – Selton fez charme.

- Claro que não. Só fico preocupado de depois você ficar de castigo e não poder mais me ver – Rafael sussurrou.

- Mesmo que eu fique de castigo, ainda posso te ver na escola.

- E eu esperando algo mais romântico...

Foi a vez de Selton chamar-lhe a atenção

- Cuidado...

- A gente pode decidir isso mais tarde?

- Claro. Aqui, você tem razão. Vou em casa dar alguma satisfação e nos falamos depois?

- Tudo bem. Vou lá abrir o portão pra você.

Selton chegou perto do namorado e deu um beijo discreto nos lábios.

- Não precisa, meu lindo – ele sussurrou – Eu sei o caminho. Até mais tarde.

- Falou, cara – eles se despediram em voz alta, pra Alex ouvir da sala.

Apertou-lhe o peito se despedir de Selton daquela maneira, contudo, entendia que não dava pra ser de outro jeito. Não podiam correr o risco de Alex ou Sueli entrar na cozinha e pegá-los no maior amasso. Viu seu namorado se afastar, passando pela porta e sumindo no corredor; o ouviu falando com Alex. Ficou com medo que, talvez, Selton nunca mais voltasse, que se tocaria de que não deveria dar trela pra ele e que terminasse da próxima vez que se reencontrassem. Então, viu que não passava de um medo infantil, afinal, foi o próprio Selton quem o pediu em namoro. Enfim, ouviu a porta da sala se fechar. Selton tinha ido.

Voltou a se concentrar na louça que estava lavando. Tirava as sobras de comida, jogava-as no lixo, deixava o prato em baixo da água corrente, passava a esponja algumas vezes e, quando estava satisfeito com a limpeza, colocava-o no escorredor. Repetiu isso, sem perceber que estava fazendo. Rafael se sentia livre, leve e solto, nas nuvens. Mal podia acreditar que estava ficando com o cara que sonhara tanto. Nunca desejou tanto alguém quanto Selton e o teve durante a noite toda e quase o dia todo. Ainda se veriam a noite, mas mesmo assim queria ele naquele instante! Porém, não podiam ficar junto o tempo todo, pois acabariam se cansando um do outro.

Terminou de lavar a louça, secou as mãos no pano de prato e subiu para seu quarto. Olhou para sua cama e para o idiota colchonete armado – literal e figurativamente – e lembrou-se da noite que teve com Selton. Eles dormiram ali, juntos, como namorados. Uma noite linda. Ele sorriu de felicidade, ao recordar cada sensação que experimentou, cada gosto, cada cheiro. Cheiro. “Será que o cheiro dele ainda está no lençol?”, pensou. Deitou-se em sua cama e respirou profundamente. Lá estava, impregnado no tecido macio, o cheiro do corpo de Selton, dando vida a cada memória da noite anterior.

- Que perfume...

Sua viajem foi interrompida pelo som de seu celular tocando. Se não fosse pelo toque especial que tinha colocado pra Ana, ele certamente ignoraria a chamada, mas como era a melhor amiga, ele atendeu tão logo encontrou o aparelho na mochila.

- Alô.

- Rafa? Tudo bom? - perguntou Ana do outro lado da linha.

- Tudo ótimo! - exclamou.

- Nossa! Que voz é essa? Ontem, eu achei que você ia pular de um prédio e hoje você me atende com essa voz maravilhosa?! O que houve?

- Tem como você vir aqui em casa? Não quero falar por telefone, porque pode chegar alguém a qualquer momento e a história é um pouco longa.

- Está bem. Já vou - disse a garota - Só vou arrumar e apareço aí.

- OK. Não demora.

Doze - Erro

Hugo não almoçara. Não tinha estômago pra comer nada. Mesmo que já tivesse brigado com Mônica centenas – se não, milhares – de vezes, ele não se acostumava. Não importava como a briga começasse, ela sempre terminava no mesmo assunto: Júnior, o filho transviado. Mesmo que o filho mais velho não ajudasse muito na convivência familiar, era ingenuidade culpá-lo pela instabilidade conjugal que Hugo e Mônica viviam. Suas brigas já datavam bem antes de Júnior nascer.

Agora viviam sempre em pé de guerra, qualquer coisinha virava motivo pra discutir e toda discussão acabava em Júnior. “Não me espanta que o garoto seja tão desajustado...”, pensou. Se Junior ouvia metade das brigas dos pais – e certamente ouvia – devia viver uma pressão tremenda, sendo sempre citado entre gritos e alguns insultos.

Ele sabia que tinha que mudar. Não podia continuar sustentando aquelas briguinhas com a mulher sem de fato mudar o que estava errado. A mudança pra uma cidade longe de Brasília tinha sido sua idéia, justamente, pra revitalizar a dinâmica familiar. Júnior, claro não teve direito de voto, mas Selton apoiou totalmente a idéia do pai. Aliás, Selton era, provavelmente, o integrante mais maduro da casa. Mônica, como era de se esperar, achava inviável sair de Brasília e queria tentar outras saídas; por exemplo, internar o filho. Tentaram, na verdade. Algumas vezes. Até que a situação se tornou insustentável e se mudaram pra Juiz de Fora.

Hugo não estava zelando apenas pelo bem estar do filho. Ele acreditava que sair de uma cidade grande e estressante faria bem para o seu casamento, para sua relação com Mônica que, apesar dos pesares, ainda era a mulher que ele amava. Na sua cabeça, ninguém se debateria daquela maneira, naquela situação crítica, se não amasse muito o cônjuge.

Ele só esperava que, na sua insistência, não estivesse cometendo um grande erro.

Onze - Almoço Na Casa dos Moreira e Castro

Rafael e Selton desceram para almoçar, quando Alex gritou lá de baixo. Antes pararam no banheiro para lavarem as mãos e então se sentaram a mesa. Alex já tinha se servido e comia em silêncio. Quando o irmão caçula e o amigo passaram pela porta, ele levantou os olhos, sério. Seu olhar cravou-se assustadoramente em Selton.

Rafael percebeu que o irmão estava sério e perguntou:

- O que houve, Lex?

- Nada. Eu não arrumei nada não. Está tudo nas panelas. Podem ficar a vontade.

- Valeu – Selton respondeu.

Os dois pegaram um prato, cada, e passaram a se servir. A comida cheirava muito bem, estava bem quente, expelindo uma fumaça densa e acinzentada. Tinha arroz branco, feijão preto (clássicos), bife que parecia ser de picanha, frito com bastante molho inglês – do jeito que Rafael gostava – e a salada de alface com milho verde, ervilha e tomate. Rafael não era de comer muito e serviu de uma pequena porção de cada coisa. Selton, por outro lado, mesmo que tivesse sido instruído a se servir como quisesse, moderou um pouco. O que despertou a curiosidade de Rafael, mas ele nada comentou. Sentaram-se a mesa, um ao lado do outro. Rafael enchia um uma garfada, enquanto Alex os esquadrinhava.

- E então, pegaram alguma garota no churrasco, ontem? – Alex perguntou.

Selton encarou, Rafael, rapidamente, confuso, e respondeu, hesitante:

- Eu fiquei com uma garota.

- Gostosa?

Até Rafael achou estranho o interesse do irmão.

- Aham – Selton respondeu.

- O que deu em você, Lex?

- Puxando papo, só isso – mentiu.

O que Alex não confessaria era que estava sondando Selton, porque estava desconfiado. Desde que encontrara os vídeos gays no computador do irmão, estivera remoendo o assunto. Decidira ficar de fora e esperar que Rafael assumisse que era gay e com certeza não tocaria nisso. Mas aquela era a primeira vez que Rafael levava um amigo homem pra passar a noite – sem avisar a mãe ou ele mesmo. Era no mínimo intrigante.

- Eh, ela é gostosa, sim.

- É a Débora. Você sabe quem é – Rafael disse, entre os dentes, lembrando-se da cena dela e Selton na piscina.

- Você conhece a Débora?

- De nome e de foto. Vi uma vez no Orkut do meu irmão – Alex explicou rapidamente - E você, Rafa? Pegou alguém?

Antes que ele pudesse responder, Selton falou:

- Se ele pegou, ninguém sabe; mas ele ficou um bom tempo trancado com a Ana, num quarto.

- Selton! – Rafael gritou.

- Sério? – Alex perguntou, incrédulo – Fazendo o quê?!

- Ninguém sabe – Selton riu do desespero de Rafael.

- Então os dois mandaram bem ontem na festa?...

- Mandamos.

- Um de nós com certeza – Rafael resmungou.

- Ele jura que não deu uns pegas na Ana – Selton disse.

“Porque ele está fazendo isso?”, Rafael se perguntou.

- Já conheço essa história – Alex disse, sem dar muita atenção.

- Olá, meninos! – disse Sueli, aparecendo na porta da cozinha – Já vi que temos convidados.

A conversa de Alex e Selton distraiu tanto Rafael, que ele nem ouviu sua mãe chegar.

- Mãe, fala pra esses dois, de uma vez por todas, que eu Ana somos apenas amigos! – Rafael implorou, enquanto Sueli lhe dava um beijo no rosto.

- Ainda essa história, gente? Os dois são só amigos.

- Mas a gente falou que não eram?! Ninguém disse isso, dona Sueli.

- Selton, se você não parar de me chamar de “dona”, juro que vou te tirar esse prato de comida – ela ameaçou, mas não era sério.

- Ok, parei.

- Onde você foi, mãe? – Rafael perguntou, aliviado pela história ele/Ana ter acabado.

- Eu fui almoçar fora e depois fui na casa da Lúcia – ela omitiu deliberadamente que o almoço tinha sido com Pablo e que brigara com ele – Depois que caiu aquela chuva, não deu pra voltar pra casa.

- Eu disse – Selton falou, orgulhoso.

- É a segunda vez que você diz isso sabichão – Rafael disse.

- O Selton dormiu aqui, essa noite – Alex disse. Rafael notou que havia um quê de denuncia na voz do irmão.

- Sério? – ela perguntou, enquanto servia seu prato.

- Éh! A chuva começou a cair e não parou mais – Rafael disse - Aí falei pra ele ficar aqui e esperar a chuva passar.

- Fez muito bem – Sueli se sentou à mesa, ao lado do primogênito – Eu sei que ele mora do outro lado da rua, mas uma chuva daquelas ia molhá-lo todo em questão de segundos. Pra você ficar doente, não custaria muito.

- Eu tenho uma saúde de ferro – Selton se gabou – A última vez que fui ao médico eu tinha uns nove anos.

- Faça o que puder pra continuar assim. Isso inclui não sair no meio de tempestades – Sueli o advertiu.

- Pode deixar.

- E a festa de vocês ontem, como foi?

- Esse assunto de novo, não? – Rafael reclamou. Sabia que voltariam a falar dele e Ana, Selton e Débora. E Essa era a última coisa que queria ouvir. De novo.